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Normalitas - Susana Bragatto
Susana Bragatto

Os mil olhos psicanalíticos de Hitchcock e Dalí

Sobre a onírica colaboração em "Quando fala o coração", com Ingrid Bergman e Gregory Peck

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No Halloween de 1945, entrava em cartaz nos Estados Unidos um filme que se consagraria como um dos primeiros a abordar e utilizar como leitmotiv uma então nascente disciplina de investigação teórica e clínica das cousas d'alma, a psicanálise.

Freud havia falecido apenas 6 anos antes. O fim da Segunda Guerra havia acabado de acontecer a princípios de setembro.

Era um momento histórico, hmm, no mínimo interessante para adentrar o coração das trevas, os mil olhos do inconsciente, o mundo além do mundo.

"Quando Fala o Coração" (Alfred Hitchcock, 1945 - "Spellbound" ou "Recuerda", em español, baseado na obra de John Palmer e Hilary Saunders) não entraria pra eternidade cinematográfica como um dos grandes filmes do mestre-do-suspense.

Isso, sim, marcou por mil pequenas cousas -- o affair escandaloso dos protagonistas Gregory Peck e Ingrid Bergman, então casados com gente alheia; o Oscar para o compositor Miklós Rózsa, que, tempos depois, comentaria que nem manteve contato com o diretor, para quem a trilha se intrometia demais no filme; o conservadorismo do estúdio, que eliminou boa parte do papel da ninfomaníaca Mary Carmichael, uma das pacientes do asilo psiquiátrico onde é ambientada a trama.

E, last but not least, o plot centrado em um enigma psicanalítico, reimaginado por uma cenografia do artista español Salvador Domingo Felipe Jacinto Dalí i Domènech, vulgo Salvador Dalí, para a famosa.cena.do.sonho.


SONHOS EDITADOS

Deter-se sobre o backstage de uma obra de arte é desfazer mitos.

Para "Quando Fala...", Hitch, dizem, queria Cary Grant no papel do doutor Edwardes, vulgo John Ballantyne; o produtor-mogul-hollywoodiano David O. Selznick queria Joseph Cotten; no fim, optaram pelo jovembeloestatuesco Gregory Peck.

Homem olha fixamente para a câmera, enquanto é observado com curiosidade por uma mulher jovem e um homem mais velho com óculos
Cena do filme "Quando fala o coração", de Alfred Hitchcock, com Ingrid Bergman, Michael Chekhov e Gregory Peck - Reprodução

Ingrid Bergman, sim, foi a escolha emcimadapinta pra fazer a fria-linda-inteligente doutora Petersen, embora Selznick vagamente desejasse resgatar Greta Garbo da aposentadoria pro papel.

Este foi o primeiro de três papéis icônicos que Bergman interpretaria sob a batuta hitchcocickckckjciciana.

Sobre Dalí, naquela época vivendo nos EUA e já um arxxtista consagrado, dizem que Selznick nem queria contratar, pensando nos custos.

Publicamente, Hitchcock, por outro lado, teria dito: "eu poderia ter escolhido De Chirico ou Max Ernst, mas ninguém era tão imaginativo e extravagante como Dalí".

painel de cortinas de veludo mostra olhos arregalados pintados por Salvador Dalí
Cena do filme "Quando fala o coração", de Alfred Hitchcock, com cenografia de Salvador Dalí - Reprodução

Dalí foi chamado para desenhar, com o diretor, a cena do sonho que é descrita por Peck em uma sessão psicanalítica com a doutora Constance Petersen e o doutor Alexander Brulov -- este, interpretado por Michael Chekhov, único ator do elenco indicado ao Oscar de melhor coadjuvante e, por sinal, sobrinho do Anton, aquele-o-próprio.

A cena original do sonho, segundo a própria Ingrid Bergman, teria 20 minutos e incluía a própria vestida de deusa grega. Até hoje, os únicos registros dessa filmagem toda são excertos no arquivo Selznick.

Aliás, a ideia de Hitch era filmar ao ar livre (para um look mais "sharp" do sonho, segundo disse) e incluiria umas coisinhas simples como quinze grand pianos suspensos sobre dançarinos ou, por sugestão de Dalí, uma estátua se rompendo e liberando 70841708 formigas que cobririam o corpo da Ingrid (essa ideia o Hitch recusou, achando horríver e impossíver).

"Cenas de sonhos em filmes sempre foram envolvidas em torvelinhos de fumaça e filmadas ligeiramente fora de foco para fazê-las parecer enevoadas e borradas, mas sonhos não são assim; são muito, muito vívidos", diz Hitchcock a François Truffaut, numa de suas antológicas conversas.

O diretor queria que a fotografia da cena do sonho fosse "vívida como Dalí pintava". Queria a "precisão arquitetônica" do artista.

Cena mostra homem sobre telhado de casa ao lado de uma chaminé com o rosto coberto por um tecido e vestido com terno, segurando uma roda de carroça torta com nuvens ao fundo
Cena do filme "Quando fala o coração", de Alfred Hitchcock, com cenografia de Salvador Dalí - Reprodução
painel de cortinas de veludo mostra olhos arregalados pintados por Salvador Dalí
Cena do filme "Quando fala o coração", de Alfred Hitchcock, com cenografia de Salvador Dalí - Reprodução

O corte final reduziu a cena de 20 para pouco menos de 3 minutos, para profunda insatisfação tanto de Dali quanto de Hitchcock. Por cierto, dizem que este último sequer dirigiu a cena, e só assumiria sua autoria depois que o filme já tava lançado e aclamado-lambido-aplaudido pela crítica.

Ainda assim, e ainda que o filme não tenha entrado pra HistóriaDuCinema como um dos Grandes do diretor inglês que amava pássaros pretos e martínis depois das 18h, a petita cena é memorável.

Os mil olhos em veludo, o jogo de cartas, o homem sem rosto, a roda derretida, o sete de paus e a dançarina beijoqueira, Peck subindo uma pirâmide e sendo perseguido por alicates gigantes, tudo em uma dança narrativa fluida, são um primor da livre interpretação arte-psicanalítica, um flerte com o nascente estudo dos sonhos e do inconsciente -- fronteiras que, até hoje, mantêm muitos mistérios, entre maravilhosos y profundos, como la vida mesma.

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Fui longe, hein.

Pintura de olho aberto com alicate chegando perto da retina
Cena do filme "Quando fala o coração", de Alfred Hitchcock, com cenografia de Salvador Dalí - Reprodução

O sonho era o enigma: decifrá-lo era decifrar um crime, desfazer a névoa de uma amnésia, reatar as pontas desfeitas por uma enfermidade mental. O plot era inovador para a época. Não livre de críticas, por Tutatis, mas inovador.

Não foi a primeira incursão de Dalí no cinema. Antes, havia colaborado com Buñuel. Mas foi seu primeiro comeback depois de mais de uma década tentando emplacar colaborações fílmicas.

Até o Dalí tinha suas dificuldades, olhaí.

PSICANÁLISE NUMAS

"Eu só queria fazer o primeiro filme sobre psicanálise", Hitchcock diria anos depois a Truffaut.

Outros rumores apontam que Selznick é quem teria vindo com a ideia do filme em primeiro lugar, entusiasmado pelo que seriam Supa Dupa Resultados com sua própria terapeuta, a psicanalista Mary E. Romm.

Romm virou consultora para o filme e Hitchcock teve que aguentar a dita em seu cangote no set. Houve, por conseguinte, uns tantos arranca-rabos entre os dois. Claro.

"Quando fala o coração" levou 6 indicações para o Oscar e, como dito antes, ganhou a estatueta dourada de melhor trilha sonora. Entre outras peculiaridades desta, vale mencionar o uso do theremin como instrumento condutor do suspense.

Theremin: um dos troços musicais mais maravilhosos já inventados.

Tanto Hitchcock quanto Dalí pouco falariam do filme posteriormente ao longo de suas vidas. Tal é o muxoxo do artista quando as cousas não saem como sonhado. Sonhos...

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