Normalitas

Espanholices, maravilhas do ordinário, brotos de brócolis

Normalitas - Susana Bragatto
Susana Bragatto

A terra mágica do torneiro cabeçudo

Ou: de como me ufano porque há sonhadores. Como Josep, o Tarzan espanhol

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Oh well, pra ser muito honesta, eu nem deveria usar a comparação, porque nunca passei do primeiro filme da trilogia.

Mas não dá pra visitar as Cabanas de Argelaguer, nos vales verdes da Catalunha, e não pensar em hobbits do Señor de los Anillos. E, vagamente, nos mirabolantes planos que a maioria de nós acalenta e esconde na alma, protegendo-os nem sei de quê até nossos respectivos últimos suspiros.

Ele -- de batismo, Josep Pujiula, de famoso, Garrell, aka Tarzan de Argelaguer, compartilha com nosso quase-to-be-presidente, Lula, a profissão de origem: torneiro mecânico.

Aos repórteres curiosos que o buscavam uma e outra vez, costumava replicar que fazia o que fazia por brincadeira, sem planejar nada. Ia saindo. Ia vivendo, kceta.

-- Sou o rei do fogooooo! -- grita, do alto de uma torre de palha e madeira em chamas, no documentário 'Sobre la marxa (El Inventor de la Selva)' (De improviso, 2013, de Jordi Morató).

Vestido com uma tanga de pele e jogando umas cadeiras pro alto. Depois de pescar uns peixes com as mãos. Ma-hero.

Em uma reportagem da televisão local (TV3) realizada em 2014, a entrevistadora pergunta ao então senhor de cabeleira branca e camisa azul-bic: de onde saiu a ideia do Tarzan?

"Eu costumava me banhar no rio por ali, e foi acontecendo por casualidade -- sobre la marxa", responde, simples e com muita cordura, como se diz aqui. Já levava uns 40 anos nessa doce brincadeira.

UM MUNDO FANTÁSTICO

Um belo dia, ou talvez tenha sido uma noite de fogueira, quem é que pode saber?, Josep-em-seus-late-30s, quem sabe por epifania, tédio ou crise existencial (quem nunca), começou a construir.

O local escolhido: o parque natural de Can Sis Rals, que frequentava desde sempre, perto de seu pueblo natal, Argelaguer, a aproximadamente uma hora e meia de carro de Barcelona.

O nome recorda a palavra arguelaga, arbusto espinhoso de florzinhas amarelas utilizadas como colorante barato na Idade Média (gente, sorry, tenho etimomania), mas que também se supõe que vem de Argelagorios, apelido belíssimo e sonoro que, segundo a viquipèdia catalana, figura em documentos locais pelo menos desde o ano 982.

((diga Argelagorios três vezes dando pulinho na frente do espelho procê ver))

De mãos josepianas, pois, começaram a sair casas, pontes, torres.

Adornadas com cabeças de bonecas, calotas de pneu, inscrições multicrípticas e a contribuição profusa da natureza da Garrotxa, composta principalmente por faias, carvalhos, gatos monteses e javalis selvagens, as Cabanas de Argelaguer -- como ficaram conhecidas -- começaram a expandir-se. E a chamar a atenção. Mas não só de curiosos: também das autoridades locais.

Três vezes pelo menos teve Josep que reconstruir, mudar de lugar ou adaptar sua Ciudad Mágica. Seja por falta de segurança nas construções, ou porque seus tentáculos labirínticos de madeira-metal-pedra se insinuavam perto da N-260, estada Pirineica que conecta eixos também mágicos como Figueres (terra de Salvador Dalí) e a medieval Olot. E, também, diga-se de passagem, porque o terreno pertencia à ACA, agência de águas públicas catalã.

Mas em nenhum momento o Tarzan desistiu. E isso, señoras e señoreses fritaneses, é parte indelével do encanto dessas paragens.

Josep faleceu repentinamente num dia de primavera de 2016, aos 79 anos, em sua terra mágica.

Onde até hoje permanece, aliás, já que construiu um mausoléu em vida pra si mesmo, esculpido como uma caverna-sarcófago em pedra. O local ganhou o nome de Tumba Faraônica ou La Cova del Tossut -- "A Caverna do Cabeça-dura", em catalão, o que faz todo sentido. Neah.

Deixou saudade. O então prefeito lamentou a perda, comentando que no dia anterior tinham saído em grupo de excursão pelas montanhas de Montserrat e que Josep estava "como sempre e muito ativo".

Meu amigo Pablito, autor das fotos nesta reportagem, lamenta que hoje em dia reste "muito pouco do que ele fez. Era todo um personagem que criou construções artísticas incríveis, transformando e mimetizando o entorno".

Se você se aventurar pelas terras de cá, bote no mapa: Avinguda dels Pirineus, 17853 Argelaguer, Girona. Venha com o coração aberto.

E não se espante com a inscrição à entrada que diz que cada visitante é "pessoalmente responsável pelas consequências de suas ações e decisões" -- um alerta sobre a situação de certo abandono e inseguridade em que, infelizmente, encontram-se algumas das maravilhas josepianas. Ou Tarzanianas.

Tudo isso non importa, companys*: entramos, valentes e fascinados, que o sonho do homem tossut é o voo da brabuleta...

Feliz Natal e Ano Novinho pra tutti nóis <3

* companys: companheiros em catalão

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