Faroeste 'queer' e Yves Saint Laurent: Almodóvar volta a Cannes com 'Extraña Forma de Vida'

A primeira cena do novo média-metragem do espanhol Pedro Almodóvar, 'Extraña forma de vida' (Strange Way of Life, 2023), que estreou na 76ª edição do Festival de Cannes esta semana (17), começa com Caetano.

A voz do baiano entoa o fado 'Estranha forma de vida', popularizado pela portuguesa Amália Rodrigues, enquanto na telinha o jovem modelo-ator-cantor espanhol Manú Ríos, um dos rouba-corazones da série juvenil espanhola Élite, move seus carnosos lábios, num primeiro plano à la Sergio Leone:

"Que estranha forma de vida /
Tem este meu coração
Vive de vida perdida
Quem lhe daria o condão"

Com 30 minutos de duração, figurino de Yves Saint Laurent e (vem dizendo a imprensa espanhola) gosto de quero-mais, a nova produção do diretor conta uma história de amor a partir do reencontro entre um xerife (Ethan Hawke) e um caubói (o novo querido das massas histéricas, o chileno-americano Pedro Pascal).

Foi filmada no sul da Espanha, em Almería, perto da terra desértica eternizada (ainda que anônima) pelos westerns de Sérgio Leone e sua Trilogia do Dólar (composta por 'Por um Punhado de Dólares', de 1964, 'Por uns Dólares a Mais', de 1965, e 'Três Homens em Conflito', de 1966).

Almodóvar afirmou em Cannes que não descarta a possibilidade de desdobrar a abreviada história em um longa.

Vinte anos atrás, story goes que o diretor recusou a direção de 'Brokeback Mountain' porque duvidava poder ter a liberdade desejada pra filmá-lo.

Com 'Extraña forma de vida', diz, "uma de minhas maiores prioridades foi assegurar-me de não cair em anacronismos".

Os dois protagonistas, machotes de manual, como se diz por aqui na España, arrumam a cama juntos. E a cena de amor é uma elipse orquestrada em vozes. "Preferi mostrar suas vozes desnudas a seus corpos desnudos", explica. "O que dizem um ao outro tem mais impacto do que eu teria conseguido com qualquer cena explícita de sexo".

No quarto do rancho, o caubói Pascal, com seu tom rasposo, diz a um Hawke ferido e acamado, do qual cuida com dedicação amorosa: "anos atrás [seriam eles os Brokeback guys maduros?] você me perguntou: o que dois homens poderiam fazer vivendo juntos em um rancho? Eu vou te responder agora...".

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No cartaz do filme, não é só Pascal, lançado ao estrelato com a série zombie 'The Last of Us' (2023), e sua jaqueta verde bandeira haute couture que chamam a atenção.

Também a parceria com a Saint Laurent Productions, nova divisão cinematográfica da casa YSL, aparece em letras garrafais.

'Extraña...' é a estreia maiúscula da marca francesa no mundo da sétima arte.

Espera, minto: as primeiras incursões aconteceram nos anos 1960, quando estrelas como Jean Seberg (em 'Moment to Moment', de 1966), Sophia Loren (em 'Arabesque', 1966) e Catherine Deneuve (em 'Belle de Jour', 1967) foram vestidas pela firma.

A nova divisão, porém, transcende os figurinos e entra de cabeça nas produções, pelas mãos do diretor criativo da marca, Anthony Vaccarello.

Antes de Almodóvar, a empresa co-produziu um média-metragem de Gaspar Noé, 'Lux Aeterna', com Charlotte Gainsbourg e Béatrice Dalle; e, também presente nesta edição do Festival de Cannes, 'Phony Wars', última obra inacabada de Jean-Luc Godard, falecido em setembro de 2022. Outras parcerias já estão em curso: com o canadense David Cronenberg e o italiano Paolo Sorrentino.

O novo filme com Almodóvar tem toda a pinta de jogada publicitária, diga-se de passagem.

'Extraña...' é o segundo filme em inglês do cineasta, cujo primeiro prêmio em Cannes foi de melhor direção em 1999 por 'Todo sobre mi madre'. O primeiro em inglês, 'La Voz Humana' (2020), também um média-metragem, estrelava a maravipower Tilda Swinton no centro de um monólogo adaptado de Jean Cocteau.

A histeria marcou a estreia do filme em Cannes. Tinha fila de gente acampando e tomando chuva pra conseguir uma entrada pra exibição.

O frenesi em torno do novo filme não era exatamente por Almodóvar, como observa Guilherme Genestreti, editor da Folha, em sua cobertura do evento, mas pela expectativa da presença do ator Pedro Pascal -- que, no fim, não apareceu.

'Extraña Forma de Vida' será lançado no Brasil pela plataforma de streaming MUBI, e chega aos cinemas espanhóis no dia 26 de maio.

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EPÍLOGO

Estive em Cannes a trabalho algumas vezes, no Palais des Festivals, onde acontece o evento, e quase sempre justamente depois do festival de cinema.

Lembro de, fascinada, passear pelos cantos da cidade lendária, tentando atar suas pontas oníricas.

Pontos de ônibus e táxi com fotos gigantes de atores de Hollywood -- algumas, pichadas ou cobertas por rabiscos tipo "je t'aime";

Hordas de turistas tirando foto na escadaria do Palais -- que, examinada de perto (sim, eu examinei de perto), tinha uns cantinhos meio gastos e exibia nada glamurosas bitucas de cigarro;

O preço absurdo de doses ínfimas de vinhos peleones, saboreados em bares caça-turistas diante do mar; o parquinho de atrações na orla, onde um dos olhos do elefante já não brilhava, a lâmpada queimada; o burburinho da rue d'Antibes, com suas lojas que vão do luxo a acessórios pra celular.

Mas também recordo festas e noitadas inesquecíveis em casarões e em Le Suquet, o bairro medieval. Ali conheci, entre outros personagens locais, um senhor francês, alto e delgado, sempre de branco e tostadíssimo de sol, que repassava, hm, substâncias psicoativas ilícitas para as celebs na Riviera Francesa nos anos 70 e 80, e tinha muita história pra contar.

"Antes, o glamour era mais real: os filmes, os artistas, as festas", comentou comigo certa vez, ozóinho azuis perdidos na distância. "Agora, parece que virou tudo propaganda. Tá chato, très chato, minha amiga...".