O Mundo É uma Bola

O Mundo É uma Bola - Luís Curro
Luís Curro

Tristeza nacional, Tragédia do Sarriá completa 40 anos

Derrota para a Itália de Paolo Rossi na Copa do Mundo de 1982 foi um dos momentos mais tristes e doídos da seleção brasileira

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Não gostaria de lembrar, mas é impossível. Todo ano, quando julho chega, as memórias chegam junto, implacáveis. O dia 5 é o dia.

Pois o 5 de julho, ano a ano, desde 1982, é uma data triste para o futebol brasileiro.

O deste ano é mais emblemático, pois significa o aniversário de 40 anos de uma das maiores decepções já vividas pela seleção brasileira, a Tragédia do Sarriá.

O texto a seguir, de minha autoria, foi publicado originalmente no dia 5 de julho de 2017, 35 anos após Paolo Rossi (1956-2020) e companhia eliminarem o Brasil da Copa da Espanha.

A republicação faz-se válida para que os que assistiram àquela Copa, e à fatídica partida no estádio em Barcelona, que não existe mais (foi demolido em 1997), possam rememorar o quão encantadora foi a seleção de Telê Santana e o quão doída foi a queda de Zico e grande elenco na segunda fase (que equivalia às quartas de final).

Também serve para que os mais jovens conheçam a história e saibam a razão do abalo de milhares de torcedores brasileiros que, como eu, choraram pra valer numa tarde de segunda-feira.

Capa da edição da revista Placar de 9 de julho de 1982, que relata a eliminação do Brasil para a Itália na Copa da Espanha
Capa da edição da revista Placar de 9 de julho de 1982, que relata a eliminação do Brasil para a Itália na Copa da Espanha - Arquivo pessoal/Reprodução

"Efeméride. Eis uma palavra que pouco se ouve no dia a dia. Significa um fato importante ocorrido em determinada data.

Minha memória geralmente não me ajuda a lembrar de aniversários de eventos relevantes.

Mas há uma gritante exceção. Conhecida como A Tragédia do Sarriá. Que forjou o maior carrasco da história da seleção brasileira. Mais que o uruguaio Ghiggia na final da Copa de 1950, o Maracanazo. Seu nome é Paolo Rossi, e ele é italiano.

Foto em preto e branco. Paolo Rossi tenta cabecear a bola em Brasil versus Itália na Copa do Mundo da Espanha. Ele é observado por Oscar, que está à esquerda, e marcado por Falcão, que está a direita
Paolo Rossi entre Oscar (esq.) e Falcão no jogo em que a Itália eliminou a seleção brasileira da Copa do Mundo da Espanha, no estádio Sarriá, em Barcelona - Jorge Araújo - 5.jul.1982/Folhapress

Há exatos 35 anos, em um 5 de julho, no estádio Sarriá, em Barcelona, o Brasil era eliminado da Copa do Mundo da Espanha. Perdeu por 3 a 2 da Itália (três gols de Paolo Rossi, que até então não tinha feito nenhum em quatro partidas na competição) um jogo que podia empatar para avançar à semifinal.

Resultado que deixou o Brasil de luto. Não só o time, mas toda uma nação de 120 milhões de habitantes, chorou –eu, ainda garoto, incluído.

Waldir Peres; Leandro, Oscar, Luisinho e Júnior; Cerezo, Falcão, Sócrates e Zico; Serginho e Éder.

Essa é a melhor seleção de futebol que vi jogar ao vivo, pela TV, em uma Copa, e provavelmente não verei outra que considere superior.

Em 1982, eu tinha 9 anos e, do segundo andar de um apartamento na rua Conselheiro Brotero, em São Paulo, na TV a cores cujos canais eram mudados em um seletor, empolgava-me como todo o país, na narração de Luciano do Valle, com a magia futebolística do escrete dirigido por Telê Santana.

Saudade. Se não tivesse assistido aos jogos da seleção naquele Mundial, talvez não tivesse passado a gostar tanto de futebol. Influenciou, e como.

Um time que jogava para a frente, sempre, e que jogava bonito, sempre. Encantava.

O meio de campo transbordava talento. Cerezo (Atlético-MG), Sócrates (Corinthians), Falcão (Roma), Zico (Flamengo) –este último, o melhor deles, pois mais artilheiro.

Eu gostava também dos apelidos, que lhes davam um charme a mais: Zico (que já era o cognome de Arthur Antunes Coimbra) era o Galinho de Quintino; Falcão, o Rei de Roma; Sócrates, o Doutor.

Afora o fato de Cerezo ter atuado antes de ser jogador como palhaço de circo, histórico que o tornava uma figura curiosa e para lá de simpática.

Eram ases esses quatro. Habilidosos, inteligentes, técnicos e envolventes, evitavam dar mais que dois toques na bola. A movimentação era constante, e as defesas rivais ficavam atordoadas.

Não havia no meio-campo dessa seleção um volante, um cão de guarda. Ninguém dava pancada. Pelo contrário, apanhavam dos oponentes com frequência, pois esses não sabiam como contê-los sem agarrá-los ou derrubá-los.

Os laterais, Leandro e Júnior, ambos do Flamengo, tinham como característica inerente o apoio ao ataque. Leves, ágeis e destemidos, davam o suporte ofensivo necessário para os craques meio-campistas.

Não havia um ponta-direita, e muitos cobravam a falta de um. Era famoso o quadro do programa "Viva o Gordo", de Jô Soares, no qual o personagem Zé da Galera berrava em um orelhão: "Bota ponta, Telê!!!".

Ora, ponta-direita para quê? Numa hora Zico estava ali; noutra, Falcão; numa, Cerezo; noutra, Sócrates… E existia o suporte de Leandro, que surgia como ponteiro para fazer cruzamentos precisos.

Mas havia um ponta-esquerda. E não era qualquer um.

Éder (Atlético-MG), para mim, era o que diziam ter sido José Macia, o fantástico Pepe, que atuara na mesma posição algumas décadas atrás, por Santos e seleção, e que tinha no pé esquerdo um "canhão". Pois a canhota de Éder igualmente emanava potência. Qualquer falta batida por ele, mesmo de muito longe, virava uma ameaça ao goleiro.

Completavam o time um zagueiro de futebol clássico, Luisinho (Atlético-MG), que apesar de não ser muito alto tinha grande poder de antecipação, e um trio de são-paulinos, Waldir Peres, Oscar e Serginho Chulapa.

Esse trio, em uma análise fria, destoava da equipe.

Oscar? Era alto, durão, bom cabeceador, mas não tinha habilidade –para um zagueiro, ok.

Serginho? Era alto, durão, bom cabeceador, mas não tinha habilidade –para um centroavante rodeado de talento, não parecia ok. (Careca seria o titular, mas teve uma lesão antes da Copa e foi cortado.)

Waldir Peres? Não era durão, não era bom cabeceador e não tinha habilidade –à época, um goleiro não precisava de nada disso; precisava ser unanimidade, e ele não era. Nem alto para a posição Waldir era (1,81 m).

Porém eu gostava de todos do time titular, sem exceção. E passei a gostar mais e mais no decorrer da Copa.

Os resumos dos jogos, a seguir, exibem os porquês.

Jogo 1 (URSS) – Cerezo não pôde jogar devido a uma suspensão, e Dirceu começou a partida de estreia. A União Soviética surpreendeu e saiu na frente, no 1º tempo, depois de Waldir Peres levar um frangaço em um chute de fora da área de Bal. O tempo passava, passava, e o goleiro Dasaiev mostrava-se uma muralha intransponível. Até que, aos 30 minutos do 2º tempo, Sócrates recebeu a bola na intermediária, passou lateralmente por dois rivais e mandou no ângulo. Dasaiev ainda resvalou na bola, mas era um chute sem defesa. O Brasil seguiu em cima. A dois minutos do fim, Paulo Isidoro, que substituíra Dirceu, rolou a bola da ponta direita para o meio, Falcão a deixou passar entre as pernas e surgiu Éder, que a ergueu com um toque antes de disparar um torpedo que deixou Dasaiev estático. 2 a 1. Vitória de virada, épica.

Jogos 2 e 3 (Escócia e Nova Zelândia) – Essas partidas serviram para despertar nos jogadores e nos torcedores uma confiança exacerbada. Duas goleadas. A primeira, contra os escoceses, mostrou mais uma vez o poder de reação da equipe: 4 a 1, após sair perdendo. Zico fez de falta, Oscar, de cabeça, Éder, encobrindo o goleiro, e Falcão, em chute de fora da área. A segunda, diante dos frágeis neozelandeses, foi um 4 a 0 arrasador. Só deu Brasil, o tempo todo –podia ter sido 8 a 0. Zico somou mais dois gols, Falcão, mais um, e Serginho fez seu primeiro.

Na segunda fase, o Brasil teria pela frente os campeões mundiais Argentina, de Maradona (então com 21 anos), e Itália, desacreditada após se classificar com três empates na primeira fase. Não importavam os adversários. Qualquer um parecia fácil. A confiança exacerbada dos brasileiros já havia se transformado em um "já ganhou".

Jogo 4 (Argentina) – O Brasil mostrou superioridade do início ao fim… e venceu com folga, por 3 a 1, o seu arquirrival. Zico pegou rebote de falta cobrada violentamente por Éder no travessão e abriu o placar. No 2º tempo, Falcão cruzou para Serginho fazer o que mais sabia: cabecear para as redes. E Júnior, em investida-surpresa, recebeu lindo passe de Zico para fazer o terceiro –e celebrar com uma sambadinha (adepto do samba, o lateral gravou antes da Copa o hit "Povo Feliz"; e estávamos mesmo). Com o jogo perdido, e a classificação idem (os argentinos já tinham perdido de 2 a 1 para os italianos), Maradona apelou e deu, aos 40 minutos, uma voadora em Batista, que substituíra Zico. Foi expulso. O gol de Ramón Díaz, pouco depois, passou quase despercebido.

Jogo 5 (Itália) – O Brasil mostrou superioridade do início ao fim… mas perdeu, dolorosa e dramaticamente. Paolo Rossi, o camisa 20 da Azzurra, jogou o jogo da vida. Fez 1 a 0, o Brasil empatou (Sócrates, em tabela primorosa com Zico); fez 2 a 1, o Brasil empatou (Falcão, depois de Cerezo atrair a marcação de três italianos, em chutaço da meia-lua; sua vibração ao comemorar é daquelas de arrepiar); fez 3 a 2. Porém dois dos gols saíram de falhas clamorosas. No segundo, Cerezo errou de modo ridículo um passe na defesa; no terceiro, após escanteio, Luisinho, que estava perto de Paolo Rossi, deixou inexplicavelmente de marcá-lo, e Júnior, estático na pequena área, deu condição de jogo ao artilheiro. Nos instantes finais da partida, quase o 3 a 3 salvador, em cabeçada fulminante de Oscar, para o chão, que o quarentão goleiro Zoff salvou em cima da linha.

No apito final do árbitro israelense Abraham Klein, restaram comoção e lágrimas dignas de um funeral de um ente querido.

Quis rever esse jogo, inteiro, para analisar em detalhes, mas não encontrei disponível no YouTube. Vi então "A Tragédia do Sarriá - Uma Lição de Vida", documentário de 50 minutos com direção e roteiro de André Moreira Neves. É um relato fiel e emocionante dos acontecimentos, com entrevistas com jogadores e jornalistas e a lembrança de quase todas as jogadas mais importantes da fatídica partida.

Entre elas, houve um gol feito perdido pelo Brasil no 1º tempo, quando Serginho e Zico ficaram cara a cara com Zoff, e o primeiro foi mais rápido para chutar de pé direito (o ruim), bisonhamente, para fora. Também no 1º tempo, houve um pênalti não marcado para o Brasil, pois Gentile, carrapato de Zico no jogo, rasgou a camisa 10 amarela, na área. Do outro lado, a Itália, já com 3 a 2 no placar, teve gol de Antognoni anulado por impedimento mal marcado (esse lance não aparece no filme).

Entre tantas as frases pós-eliminação ditas no documentário, elejo uma, de Sócrates, o capitão do time, que resume tudo o que significou aquela seleção brasileira: "Nesta Copa do Mundo, apesar de não termos ganho, o Brasil deu uma lição do que é jogar futebol". Assino embaixo.

No dia 5 de julho de 1982, a pragmática porém eficaz Itália, que depois venceria a Alemanha Ocidental na decisão, ganhou do Brasil e derrotou também um conceito valiosíssimo, que foi minguando até praticamente desaparecer nos anos que se sucederam: o futebol-arte.

Em tempo: Sempre haverá os que dirão que o Brasil perdeu porque foi taticamente ingênuo, pois deveria ter se defendido, administrado o empate (que teve três vezes nas mãos) diante da Itália. É um argumento, mas não daria certo. Aquela seleção não sabia jogar defensivamente, atacar estava no seu DNA. A verdade é esta: a seleção brasileira perdeu a Copa de 1982 jogando lindamente, e por isso é uma equipe apaixonante e inesquecível."

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.