O Mundo É uma Bola

O Mundo É uma Bola - Luís Curro
Luís Curro

Uma conquista paradoxal

Seleção feminina da Espanha é campeã mundial mesmo com relação estremecida entre comissão técnica e jogadoras

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A cena exibida pelas câmeras é emblemática.

Apito final da árbitra americana Tori Penso no Stadium Australia, em Sydney, e a comemoração da Espanha é dividida em duas cenas.

Em uma delas, dentro do campo, as jogadoras, com a tradicional camisa vermelha, amontoam-se numa rodinha, umas deitadas sobre as outras, a capitã Olga Carmona por cima de todas, em efusiva comemoração.

Jogadoras da Espanha festejam, amontoadas. a conquista da Copa do Mundo em Sydney, na Austrália
Jogadoras da Espanha, incluindo a capitã Olga Carmona (19), festejam a conquista da Copa do Mundo em Sydney (Austrália) - Li Yibo - 20.ago.2023/Xinhua

À beira do campo, a comissão técnica, liderada pelo treinador Jorge Vilda, igualmente comemora bastante, com abraços, sem a presença de uma única atleta.

Uma distância que torna paradoxal a conquista espanhola, inédita, da Copa do Mundo feminina, com vitória por 1 a 0 sobre as favoritas inglesas, gol da lateral esquerda Carmona, em chute de canhota de dentro da grande área no primeiro tempo.

O futebol mostrou neste domingo (20) que, por incrível que pareça, uma seleção, mesmo com a relação claramente estremecida entre técnico e elenco, pode terminar uma competição de forma bem-sucedida.

Desde bem antes do começo do primeiro Mundial na Oceania sabia-se dos problemas de relacionamento envolvendo as duas partes.

No ano passado, 15 atletas selecionáveis enviaram, separadamente, emails à federação espanhola expressando descontentamento com Vilda, que comanda a Espanha desde 2015.

Elas diziam que se afastavam temporariamente da seleção. O intuito, não expresso de maneira explícita, era conseguir a saída de Vilda –rejeitada com veemência pela federação.

A insatisfação se devia aos resultados em campo, aos métodos de treinamento, à gestão das contusões e das viagens e ao clima ruim no vestiário. Um combo que estava afetando a saúde mental de jogadoras e que se mostrava perfeito para implodir qualquer time.

Das jogadoras que enviaram os e-mails em setembro, depois da queda nas quartas de final da Eurocopa-2022 diante da Inglaterra, algumas recuaram e aceitaram voltar a defender a Espanha.

Três foram titulares na final da Copa: Ona Battle, Aitana Bonmatí e Mariona Caldentey. Todas elas fizeram partida excelente em Sydney.

A lateral direita Battle esteve bem tanto na marcação como no apoio, a meia Aitana (eleita a melhor atleta do Mundial) foi a dona do meio-campo, e a atacante Mariona deu o passe para o gol de Carmona.

Na final, a Espanha não só ganhou como dominou a Inglaterra, que só esteve bem nos primeiros 15 minutos.

As espanholas tiveram mais posse de bola (47% contra 37%), finalizaram o dobro de vezes (14 contra 7), trocaram mais passes (486 contra 360) e com mais acerto neles (85% contra 78%), conquistaram mais escanteios (7 contra 3).

E ainda desperdiçaram um pênalti no segundo tempo, mal batido por Hermoso e defendido pela goleira Earps.

Ou seja: por mais que haja sérios problemas de convivência entre as atletas e o treinador, a Espanha se mostrou uma seleção bem treinada, com acerto adequado nos fundamentos, ótima técnica e muitíssima disposição, não apenas na decisão como na maior parte da Copa.

Desse modo, como tirar os méritos de Vilda, que é quem chefia os treinamentos, que escala o time e que define a estratégia de jogo?

As jogadoras podem discursar que "se fecharam" entre elas, independentemente do desgosto com a direção técnica, pelo objetivo maior de se sagrarem campeãs do mundo.

Plausível, porém dessa forma o paradoxo se mantém, com ainda mais intensidade.

O treinador da Espanha, Jorge Vilda, comemora o título da Copa do Mundo sorrindo e fazendo sinal de positivo com as mãos
O treinador da Espanha, Jorge Vilda, comemora o título da Copa do Mundo sem a presença de jogadoras; ao seu lado (de terno), o presidente da federação de futebol do país, Luis Rubiales - Hannah Mckay - 20.ago.2023/Reuters

Na visão da federação espanhola, o resultado terá se dado pela combinação da capacidade de Vilda com o desempenho da equipe. É dificílimo separar uma coisa da outra.

Então, o desejo das atletas de substituição do detestado comandante perde força, perde argumentação. Afinal, a taça veio, elas olhando na cara dele ou não.

Com a conquista, Vilda obtém o que precisa para renovar contrato, que vence em 2024, caso queira. Seu currículo tem, agora, o componente necessário.

Restará às jogadoras, mesmo a contragosto, afirmar: "Bom, se não tem outro jeito, fica como está, não importa quem comanda, pois podemos ganhar de qualquer jeito". Elas cultivaram a tolerância até aqui, apenas estenderão o processo.

Em suma, graças ao feito da Espanha, conclui-se, paradoxalmente: dá para triunfar no futebol mesmo com relacionamento em polvorosa.

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