Políticas e Justiça

Editado por Michael França, escrito por acadêmicos, gestores e formadores de opinião

Políticas e Justiça - Michael França
Michael França

Aquilo que a meritocracia não considera

Cerca de 28% da desigualdade total pode ser explicada pela raça, gênero, local de nascimento e escolaridade dos pais

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Daniel Duque

é doutorando em economia pela Norwegian School of Economics (NHH), pesquisador de economia aplicada pelo FGV/Ibre e gestor de pesquisa do Núcleo de Estudos Raciais do Insper (NERI)

A recente discussão sobre desenvolvimento sustentável tem enfatizado a importância de combater a desigualdade de renda e de oportunidades.

Diversos estudos destacam que a desigualdade de oportunidades, que leva em conta fatores como raça, gênero e local de nascimento —os quais fogem ao controle do indivíduo—, é considerada mais prejudicial do que a desigualdade geral. Tal desigualdade sistêmica pode desestimular a participação econômica de certos grupos, reduzindo o potencial produtivo e comprometendo o crescimento e a estabilidade econômica.

Na academia, pesquisadores, utilizando algoritmos de machine-learning (aprendizado de máquina), têm desenvolvido métodos para medir e analisar essa desigualdade de forma mais precisa.

Por exemplo, em um estudo que estou desenvolvendo junto com as professoras Valéria Pero, Christina Terra e Tista Kundun, utilizamos dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios para explorar a desigualdade de oportunidades no Brasil entre 1996 e 2014. Os resultados ajudam a entender melhor como as circunstâncias de nascimento influenciam os resultados econômicos ao longo do tempo.

Ele é um homem branco de barba e cabelos escuros e lisos. Na imagem, ele usa óculos de grau de haste preta
Daniel Duque é doutorando em economia pela Norwegian School of Economics (NHH), pesquisador de economia aplicada pelo FGV/Ibre e gestor de pesquisa do Núcleo de Estudos Raciais do Insper (NERI) - Divulgação

Apesar de o último ano analisado ser 2014, o que poderia sugerir uma possível desatualização dos dados, a realidade é que as mudanças em relação à desigualdade de oportunidades no Brasil foram mínimas ao longo de quase duas décadas.

Entre 1996 e 2014, apesar de uma redução significativa na desigualdade total no mercado de trabalho —com o índice de Gini caindo de 0.48 para 0.33, o que representa um avanço considerável—, fatores circunstâncias que estão fora do controle do indivíduo continuaram a desempenhar um papel robusto e até crescente na determinação dos resultados econômicos.

Em 1996, as desigualdades relativas a quatro circunstâncias (cor/raça, gênero, local de nascimento e escolaridade dos pais) explicavam 26,1% da desigualdade total.

Já em 2014, esse número havia aumentado para 28,1%, evidenciando que, apesar dos avanços em outros aspectos, as condições iniciais de um indivíduo ainda moldavam fortemente suas oportunidades econômicas. Afinal de contas, mais de um quarto da desigualdade total ainda é determinada por apenas quatro fatores que estão além do controle dos indivíduos.

O estudo também revelou que a estrutura hierárquica de certos grupos circunstanciais na sociedade brasileira manteve-se notavelmente estável entre 1996 e 2014.

Utilizando um algoritmo de machine-learning, foi possível construir uma árvore de desigualdade de oportunidades que classifica a população em categorias distintas, com base nas circunstâncias que mais influenciam a renda do trabalho. Esse mapeamento hierárquico identificou as combinações de circunstâncias que conferem as maiores e menores vantagens econômicas aos grupos.

Em 1996, o grupo identificado como tendo as circunstâncias mais favoráveis era composto por homens brancos, com um dos pais possuindo formação em ensino superior. A renda média destes era, a preços de 2024, de R$ 6.700 mensais.

Duas décadas mais tarde, em 2014, o perfil do grupo considerado mais "sortudo" permaneceu quase inalterado: homens brancos, com pelo menos um pai com ensino superior, destacando-se apenas uma variação geográfica, incluindo aqueles nascidos nas regiões Sudeste ou Norte. A renda média do grupo tinha crescido quase 8%, para pouco mais de R$ 7.200.

Da mesma forma, o grupo com as circunstâncias mais desfavoráveis em 1996 era composto por mulheres negras (pretas ou pardas), com pais analfabetos, nascidas no Nordeste –estes com uma renda de R$ 670, cerca de apenas 10% do grupo de maior "sorte".

Em 2014, este grupo ainda enfrentava as mesmas barreiras significativas, com a única diferença sendo uma maior inclusão de nascidas no Norte –além de um crescimento de renda média para pouco mais de R$ 1.000, em torno de 14% do grupo "sortudo" no mesmo ano.

Como se vê, pouco foi de fato mudado, mesmo em um período com tantas transformações sociais e no mercado de trabalho.

Essa persistência das circunstâncias tanto no topo quanto na base da hierarquia revela a durabilidade das vantagens e desvantagens institucionais e sociais ao longo do tempo. Tamanha estabilidade, tanto no peso relativo, quanto na caracterização hierárquica das circunstâncias sobre a renda, reforça a rigidez das desigualdades estruturais e a necessidade de políticas mais eficazes para promover uma verdadeira igualdade de oportunidades.

O editor, Michael França, pede para que cada participante do espaço "Políticas e Justiça" da Folha sugira uma música aos leitores. Nesse texto, a escolhida por Daniel Duque foi "Unravel", de Björk Guðmundsdóttir.

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