Políticas e Justiça

Editado por Michael França, escrito por acadêmicos, gestores e formadores de opinião

Políticas e Justiça - Michael França
Michael França
Descrição de chapéu Vida Pública

A influência das redes de amizades na trajetória escolar

Pesquisas buscam quantificar como certos resultados de nossa vida dependem daqueles que estão ao nosso redor

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Jessica Gagete Miranda

É doutora em políticas públicas pela Università Bocconi (Itália) e pesquisadora no departamento de economia da Università degli Studi di Milano-Bicocca (Itália)

O livro "A Amiga Genial", de Elena Ferrante, narra a jornada de duas amigas, Rafaella e Elena, desde sua infância no Sul da Itália, até a velhice, passando pelos amores da adolescência, e os dramas da vida adulta.

Ferrante habilmente retrata a complexidade das relações de amizade, marcadas por admiração mútua e, naturalmente, certa inveja. Em diversas passagens do livro, o leitor consegue perceber como uma amiga considera a opinião (ainda que velada) da outra na hora de tomar determinada decisão. Tal conexão exerce forte influência na vida de ambas as personagens.

Claramente, a importância dos amigos e colegas na trajetória de vida dos indivíduos extrapola os romances. Acredito que todos os leitores dessa coluna conseguem pensar em uma pessoa que os influenciou de certa forma durante a escola, na escolha da profissão, durante a universidade, no trabalho... Ou talvez tenha sido você a pessoa a influenciar alguém na hora de tomar uma decisão, tenha você consciência disso ou não.

Fotografia em preto e branco de uma mulher sorrindo, usando óculos e brincos, com cabelo curto e escuro. Ela está vestindo uma blusa de manga longa e um colar com pingente. Ao fundo, há uma vegetação densa com várias plantas e flores.
É doutora em políticas públicas pela Università Bocconi (Itália) e pesquisadora no departamento de economia da Università degli Studi di Milano-Bicocca (Itália) - Divulgação

Esse também é tema recorrente da pesquisa acadêmica. Existe até um nome especifico para essa área de pesquisa: peer effects, ou efeito dos pares.

Pesquisas nessa área buscam quantificar como certos resultados de nossa vida dependem daqueles que estão ao nosso redor. De fato, estudos já mostraram a influência dos pares no desempenho escolar, na escolha sobre cursar o ensino superior, ou até em comportamentos não desejáveis, como o uso de drogas e a criminalidade.

Um grande desafio nesse tipo de pesquisa é separar o que é de fato a influência de um amigo do que é a afinidade na formação de amizades.

É claro que temos a tendência de nos aproximar de pessoas mais parecidas conosco: mulheres em geral tem mais amigas mulheres, enquanto homens tem mais amigos homens; algumas amizades se formam através dos nossos hábitos, como ir à academia ou sair à noite.

Nas ciências sociais, chamamos de homofilia essa tendência do ser humano de se conectar mais facilmente com pessoas parecidas com ele. Agora, não é porque eu gosto de fazer pilates às 7h e conheci uma amiga na academia também fazendo pilates às 7h, que eu influenciei os hábitos de exercício dessa minha amiga ou ela os meus.

Para separar o que é de fato a influência dos pares do que é pura afinidade, ou homofilia na formação de amizades, as pesquisas se baseiam em eventos onde as pessoas acabam se encontrando ao acaso. Por exemplo, nos Estados Unidos, os estudantes são, em geral, alocados em dormitórios através de sorteio durante o primeiro ano de universidade.

Logo, se um estudante que, digamos, não fuma, cai por obra do destino no mesmo quarto que um estudante que fuma e seis meses depois o primeiro também está fumando, podemos concluir que o estudante fumante influenciou o não fumante –o que seria diferente de dois estudantes que fumam se tornarem amigos porque sempre fumam no mesmo local e horário.

Em um artigo sobre efeito de pares no Brasil, eu estudo como amigos da escola influenciam uns aos outros em sua decisão de concluir o ensino médio, ou abandonar os estudos antes de terminar essa etapa de ensino.

A evasão do ensino médio infelizmente ainda é um desafio importante no Brasil, ocorrendo principalmente entre jovens provenientes de famílias mais vulneráveis. Claro que barreiras financeiras são, por vezes, importantes determinantes dessa evasão: mesmo que as escolas públicas não cobrem mensalidade, a tentação de abandonar os estudos para começar a trabalhar pode ser significante para quem está passando por alguma dificuldade financeira.

Entretanto, existem outras barreiras não financeiras que impedem os alunos de seguirem seus estudos. Barreiras informacionais, por exemplo, fazem com que os alunos não enxerguem as vantagens de cursar o ensino médio, tanto para seu salário, como para a probabilidade de conseguir um bom emprego no futuro.

Barreiras psicológicas são outra parte importante dessa história: alguns alunos não se sentem pertencentes à escola, não se enxergam cursando uma universidade, ou simplesmente não conseguem almejar um futuro melhor.

A capacidade de almejar ou ambicionar coisas boas para si próprio é, inclusive, tema de estudo no meio acadêmico e algumas pesquisas teorizam sobre como as pessoas por vezes podem se encontrar em uma "armadilha de aspiração", onde não enxergam o porquê de se esforçar para conseguir algo melhor para si no futuro.

Enquanto amigos provavelmente não podem fazer muito para quebrar barreiras financeiras, sua influência pode ser um fator determinante na quebra de barreiras de informação ou psicológicas.

Amigos podem compartilhar informações sobre o mercado de trabalho que alguns estudantes não acessariam sozinhos. Eles também podem compartilhar suas próprias ambições com os alunos, servindo de modelo para uma vida que alguns estudantes nem sonhavam em ter. Assim, minha pesquisa se debruça em entender de que maneira amigos podem influenciar uns aos outros na sua persistência na escola durante o ensino médio.

Como em outras pesquisas sobre o efeito de pares, meu estudo também precisou adotar uma maneira de separar o que é a influência dos amigos da homofilia: se dois alunos são amigos e ambos terminam o ensino médio, será que é porque um influenciou o outro ou será que eles se tornaram amigos, ao menos em certa medida, por já compartilhar o gosto aos estudos?

Na minha pesquisa, eu exploro o fato que os alunos matriculados na rede pública de ensino, em geral, mudam de escola na transição entre o 5º e o 6º ano e, naquela série especifica, em geral são divididos entre classes por ordem alfabética.

Sendo assim, alunos que compartilham a primeira letra de seu nome, tem mais chances de cair na mesma sala durante o 6º ano. De fato, olhando para meus dados, que incluem o mapeamento de redes de amizades dos alunos, eu vejo que um forte preditor da probabilidade de dois alunos da mesma série serem amigos é o fato que eles compartilham a mesma letra de seus nomes.

Como isso, funciona como uma espécie de sorteio para grupos de amigos diferentes, sorteio esse que não depende de características dos alunos ligadas à sua renda, personalidade, ou gosto pelos estudos, eu consigo separar o impacto que o comportamento de um aluno tem sobre o comportamento de seus amigos, para além da mera semelhança que une amigos pela afinidade.

Os resultados desse estudo apontam que se um estudante possui um amigo que conclui o ensino médio, a chance de ele também concluir esse estágio educacional aumenta em 6,62%.Se focarmos na chance de concluir o ensino médio no tempo certo, a influência dos amigos é ainda maior: 14,52%.

Outro resultado importante é que a influência dos amigos é muito maior para alunos de baixa renda, o que faz sentido: alunos provenientes de famílias mais abastadas, possivelmente concluiriam o ensino médio de qualquer forma, já que tem o apoio da família para chegar até lá.

Já alunos provindos de famílias mais vulneráveis –talvez alunos cujos próprios pais não concluíram o ensino médio–são aqueles que precisam mais do incentivo dos amigos para entender a importância de ir além nos estudos.

Além desses resultados, meu estudo também mostra que o principal fator por trás da influência dos amigos na conclusão do ensino médio é que amigos inspiram os alunos no desejo de continuar seus estudos para além do ensino médio: se meus amigos almejam cursar uma faculdade, eles me influenciam a almejar por isso também. Ou seja, amigos são capazes de tirar os alunos de armadilhas de aspiração onde eles já não veem o ponto de colocar esforço em seus estudos.

Uma maneira de potencializar os efeitos dos amigos nesse contexto, seria aumentar a diversidade nas escolas: quanto mais alunos de diferentes realidades socioeconômicas interagirem na escola, mais alunos provindos de famílias vulneráveis podem aprender sobre possíveis caminhos para seu futuro.

Outro tipo de influência dos pares para além da persistência nos estudos é no desempenho desses alunos na escola. Por exemplo, em outro artigo sobre a influência de pares, dessa vez com dados americanos, eu e minha coautora, Jane C. Fruehwirth, mostramos que a exposição a colegas de classes cujos pais possuem maior escolaridade aumenta o desempenho dos alunos tanto em inglês como em matemática.

No Brasil, entretanto, a intensa segregação escolar faz com que tais interações sejam muito limitadas. De maneira geral, estudantes de escolas brasileiras são expostos a pessoas muito parecidas com eles: alunos de maior renda estudam com outros alunos de maior renda, enquanto alunos de baixa renda estudam com outros alunos de baixa renda.

Para além do problema da qualidade do ensino, que também depende muito do nível de renda dos alunos de cada escola, tal segregação aumenta ainda mais a desigualdade educacional –e consequentemente de renda– por limitar a extensão da influência que colegas de diferentes realidades pode trazer aos alunos.

O editor, Michael França, pede para que cada participante do espaço "Políticas e Justiça" da Folha sugira uma música aos leitores. Nesse texto, a escolhida por Jessica Gagete Miranda foi "Pra você, amigo", de Seu Jorge.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar sete acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.