Quadro-negro

Uma lousa para se conhecer e discutir o que pensa e faz a gente preta brasileira

Quadro-negro - Dodô Azevedo
Dodô Azevedo

Reação a Will Smith prova que a corte não tolera erro de negros

Escândalos em Hollywood são julgados com dois pesos e duas medidas

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Ilustração de faca com estátua do Oscar
Situação do ator Will Smith após o Oscar se complica após agressão ao comediante Chris Rock - Ilustração / Helton Souto - Helton Souto

Dias atrás, posicionar-se no caso Will Smith era coisa complicada porque eram muitas as possibilidades de posicionamento.

Você poderia ser uma pessoa que entende os motivos de Will Smith ter perdido o controle, mas ser contra o tapa. Você poderia ser a favor apenas do tapa. Também poderia ser a favor de nenhum dos movimentos (impulso e tapa) ou contra a decisão e a ação.

Você poderia também ser a favor de tudo o que Will Smith fez, mas contra todo o discurso messiânico dele sobre ser o protetor da família.

Poderia ser a favor do tapa, mas contra ele acontecer por conta de um antiquado e desrespeitoso acerto de contas para proteger uma dama.

Você poderia ser contra os dois envolvidos, Will Smith e Chris Rock, pelo fato capital de que nenhum deles até agora pediu desculpas a pessoa mais desrespeitada por tudo o que aconteceu na cerimônia do Oscar: Jada Pinkett Smith.

Mas o jogo virou. Desvelou-se.

Em 48 horas, Will Smith, obviamente tentando salvar sua carreira, renunciou à Academia e, segundo o tabloide The Sun, internou-se em uma clínica de reabilitação, mesmo não sendo adicto a nenhuma droga. Em seguida, seu filme com a Netflix foi colocado na geladeira.

Já Chris Rock teve, durante a semana que passou, aplausos de pé em seus shows, lotação esgotada e ingressos inflacionados.

Will Smith e Chris Rock são o que se chama de Pretos no Topo. Uma classe de gente preta que foi admitida pela corte, que cobra uma civilidade em medida diferente para pessoas brancas.

O recado é claro. Para Will Smith e para todos nós. Só é admitido no clube dos colonizados quem aceita que ainda somos uma colônia.

Para ser multimilionária, a família Smith aderiu ao jogo, não politizou-se com o tempo, e até submeteu-se a certo embranquecimento. Até o dia que o feitor negro apareceu com chicote em forma de piada que faz ferver o sangue.

Chris Rock segue em seu emprego porque cumpre uma das exigências mais admiradas pela corte: o açoite de negros por negros. Como ele há muitos, no mundo inteiro.

No Brasil colonial do século 21, a corte apressou-se em condenar Will Smith. Esqueceram-se de antes, e como sempre, ouvir mulheres negras.

Na própria noite do Oscar, o que chamamos de "black twitter" brasileiro manifestou-se em peso. As intelectuais negras, já sabendo como tudo aquilo seria visto pelo olhar da branquitude, apressaram-se para, em tuítes implacáveis, esclarecer que Jada Pinkett Smith, como mulher negra, não se encaixa, como as mulheres brancas princesas, em uma posição de fragilidade.

Djamila Ribeiro escreveu, poucos dias depois, aqui na Folha, sumarizando tudo. Não se pode medir o que acontece com pessoas negras usando réguas brancas.

"Will Smith é só um atorzinho que vai sumir antes que seque a tinta do jornal falido para o qual vocês escrevem!", desabafa o personagem de Ben Affleck em "Menina Dos Olhos", doce filme de 2004, cheio de mórbidas coincidências. A começar por ser um filme sobre carreiras do show bizz precocemente estragadas, o que acabou com a carreira do promissor roteirista Kevin Smith.

No filme, a fala do personagem de Affleck, em público, ao vivo na TV, o faz também perder sua carreira de relações públicas das grandes celebridades. Ele foi obrigado a deixar a vida de luxo em Nova York para criar sozinho a filha bebê no subúrbio de Nova Jersey.

No fim do filme entra em cena Will Smith, fazendo papel de si mesmo, em uma participação especial. Ele era, então, o maior astro do mundo. Simpático, dá conselhos para que o personagem de Affleck não perca tempo com a indústria. Para que trabalhe menos e destine energia e momentos para os que ama.

O jogo virou. Desvelou-se.

Agora o julgamento não é mais sobre o tapa. É sobre a reação desproporcional a Will Smith.

Na corte, na indústria, séries e filmes com atores brancos acusados de canibalismo, agressão às namoradas, seguem financiados. Woody Allen e Roman Polanski, acusados de estupro de menor, não só continuam elegíveis ao Oscar como continuam recebendo financiamento para seus filmes.

Quantos Oscars Harvey Weinstein ganhou até que as atrizes começassem a denunciá-lo? A Academia e indústria não sabiam, por anos, nada sobre esse caso?

E quantos brasileiros que condenaram o ato de Will Smith hoje dariam convictos um tapa na cara do deputado brasileiro que fez piada com a jornalista torturada durante a ditadura militar, se ela fosse sua companheira?

Dias atrás, posicionar-se no caso Will Smith era coisa complicada porque eram muitas as possibilidades de posicionamento.

Agora é fé cega, faca amolada –como sugere a imagem que ilustra esse texto, feita exclusivamente por Helton Souto, cientista social, artista visual e fundador do Instituto DACOR - Dados Contra o Racismo.

A corte e o corte.

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