Djamila Ribeiro

Mestre em filosofia política pela Unifesp e coordenadora da coleção de livros Feminismos Plurais.

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Djamila Ribeiro

Não concordo com tapa de Will Smith no Oscar, mas entendo a raiva dele

Todos condenaram agressão do ator contra Chris Rock, mas poucos consideraram ofensa contra sua mulher

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"Nunca conheci quem tivesse levado porrada/ Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo." Assim começa o "Poema em Linha Reta", de Fernando Pessoa (1888-1935), assinado por seu heterônimo Álvaro de Campos. Com todas as contradições de Fernando Pessoa, não dá para negar a genialidade desse poema.

Todos nas redes sociais posam de perfeitos, irretocáveis, filtros nas imagens e nas atitudes. Ninguém nunca se exalta, erra, perde a cabeça. Fiquei a refletir muito após uma das cenas mais comentadas da semana envolvendo o ator Will Smith na cerimônia do Oscar. O ator reagiu com um tapa à agressão verbal que o comediante Chris Rock fez à sua companheira, Jada Pinkett Smith.

Imediatamente milhares de pessoas comentavam o caso, e me chamou a atenção a agressividade de muitas que condenavam o ato. Li escritores famosos chamando Will Smith de imbecil, outros afirmando o quanto ele era violento, mesmo ele não tendo nenhum outro caso de violência exposto na carreira. Todos apressados a fazer julgamentos cometendo o erro que apontavam.

Na ilustração, ao centro de um fundo azul, se encontra uma mulher negra, de cabelos igualmente negros e volumosos. Ela aparece do quadril para cima, usa uma blusa vermelha, de manga curta e gola longa, calça verde, batom e unhas rosadas, traz um enfeite verde no cabelo e está de braços cruzados
Ilustração publicada em 31 de março - Linoca Souza

"Ele não deveria ter reagido assim." "Pareceu um macho defendendo a donzela", outras escreveram, mostrando sua ignorância em relação à construção do feminino negro, que nunca foi ligado à fragilidade.

Respondi a uma dessas pessoas que insistir no que ele deveria ter feito era um julgamento sem sentido, pois a gente nunca sabe como vai reagir a uma agressão. Às vezes ficamos sem ação, em outras gritamos, choramos, a gente nunca sabe. Mas os juízes de internet já saíram dando os vereditos.

Moralmente, as agressões são condenáveis, sim, mas ética é justamente refletir sobre as ações humanas. E muitas vezes o que nós condenamos moralmente podemos compreender sob o ponto de vista ético.

Não estou dizendo que concordo com o tapa dado por Will Smith, mas compreendo que é difícil lidar quando vemos uma pessoa que amamos ser agredida gratuitamente. E, nesse contexto, não julgo. Aliás, sobram julgamentos e falta empatia.

Sou veemente contra as violências sistêmicas. Mulheres são assassinadas e abusadas diariamente neste país, assim como as populações negras e indígenas. Sabemos quão violenta é nossa sociedade e, infelizmente, não vemos muito os juízes de internet se manifestarem contra isso. Muitos, inclusive, naturalizam essas violências. Nesse caso, estou tão somente falando de uma pessoa que se indignou com uma violência verbal dirigida à sua companheira e o quanto é difícil estar nessas situações.

Em 2020, uma mulher inventou mentiras contra mim nas redes sociais fomentando uma série de ataques e discursos de ódio. Essa mulher era candidata e talvez quis me usar para alavancar sua candidatura.

Esses ataques respingaram na minha filha, que foi ameaçada. Precisei registrar boletim de ocorrência, sair de casa por um tempo e, juntamente com duas organizações do movimento negro, entramos com uma ação no Ministério Público Federal contra o Twitter, uma vez que as agressões começaram nessa rede social.

E o que pessoas desonestas passaram a falar? Que eu não deveria ter chamado a tal candidata de "clarinha", sendo que ela era mesmo uma pessoa clarinha. Ora, a pessoa inventa mentiras, fomenta ódio contra mim e eu deveria ter feito o que, a chamado de irmã? Eu tenho sangue nas veias e sou humana como qualquer outra pessoa. E a desonestidade reside no fato de elas terem sugerido que eu era a errada da história, quando tão somente me defendi de um ataque covarde e desonesto.

Will Smith dá tapa na cara de Chris Rock durante cerimônia do Oscar - Robyn Beck/AFP

Ou seja, mentiras foram inventadas, ódio foi incitado e o problema era eu ter respondido? As pessoas gostam de tirar tudo de contexto e julgam que a gente deve aceitar tudo com resignação cristã. "Toda a gente que eu conheço e que fala comigo. Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu um enxovalho. Nunca foi senão príncipe na vida..."

"Foi só uma piada", mas só quem passa por uma doença sabe a dor que carrega e passou da hora de existir limites no humor. Humor que humilha, ofende e agride não é humor, é violência.

Mulheres negras são os maiores alvos de humilhações e discursos de ódio. E muitos pareceram se incomodar com o fato de uma mulher negra ser defendida e não com a ofensa na frente de milhões de pessoas que ela sofreu.

Jamais agredi alguém fisicamente, mas, sim, eu entendo Will Smith. E, como Álvaro de Campos, "arre, estou farto de semideuses! Onde é que há gente no mundo?"

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