Quadro-negro

Uma lousa para se conhecer e discutir o que pensa e faz a gente preta brasileira

Quadro-negro - Dodô Azevedo
Dodô Azevedo

Documentário sobre Racionais finalmente mostra a São Paulo preta

Produção da Netflix reestabelece a invisibilização da população negra da cidade

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Houve uma época em que apenas a TV construía imaginário brasileiro. As novelas da Globo que se passavam em São Paulo vendiam uma imagem de uma cidade sem negros.

Realities shows, como "O Aprendiz", apresentado por Roberto Justus na Record, com a imagem do empresário-apresentador que, na abertura de um dos programas, chegou de helicóptero no alto de um prédio, reforçaram essa ideia de que São Paulo é uma cidade habitada apenas por tribos de gente branca. Sejam "faria limers", "santa cecilers", netos de donos e engenho de café ou a gang que for.

O documentário: "Racionais: Das Ruas de São Paulo pro Mundo", que estreou na Netflix, destrói tudo isso.

Em suas quase duas horas de duração, não há um minuto em que todas as pessoas na tela não sejam paulistanos pretos.

Mano Brown, Ice Blue, Edi Rock e KL Jay em foto de cena do filme 'Racionais: Das Ruas de São Paulo pro Mundo'
Mano Brown, Ice Blue, Edi Rock e KL Jay em foto de cena do filme 'Racionais: Das Ruas de São Paulo pro Mundo' - Divulgação

E que paulistanos são esses que o filme mostra? Mano Brown, Ice Blue, Edi Rock e KL Jay, os integrantes do grupo que revolucionou a cultura brasileira? Não só. Aqui, os quatro são praticamente apenas veículos para contar a história de três décadas do cotidiano das pessoas pretas da cidade. Onde moram, o que sonham, no que trabalham, o que pensam do Brasil, o que acham de si. A história dos Racionais é aqui contada como a história de uma cidade que tentam esconder.

Escrito e dirigido por Juliana Vicente, "Racionais: Das Ruas de São Paulo pro Mundo" toma uma decisão espetacular: radicalmente humanizar os integrantes do grupo que, por um lado, se comportam como griôs contando sua trajetória com epifanias de ouro à respeito da vida. Mas também vemos as pessoas ao redor, que compõem a chamada "Família Racionais" –seja consanguínea, como Dona Ana, mãe de Brown, ou mãe de santo.

Afinal o sangue que corre pela pele preta é o mesmo e Juliana sabe muito bem. Ela evoca a força das mulheres no centro da história dos Racionais sem sair do foco de que os quatro integrantes são sobreviventes do grupo étnico que, no Brasil, só com perseverança chega à idade adulta. A cada 4 horas, um homem negro é morto na cidade de São Paulo.

Embora haja, aqui, motivos para todos serem hipnotizados pelo documentário, ele foi feito para pessoas pretas. Mano Brown, mais de uma vez, repete que, antes de tudo, a música do grupo é feita para pessoas pretas.

"A gente quer o nosso povo longe do álcool, do crack, longe da farinha, longe do crime, mas tem gente que quer ver nosso povo cada vez mais dentro que é pra morrer mais de nós e os playboy cada vez mais no poder e nosso povo cada vez mais se fudendo. E quando você fala que você não quer isso, você é um cara perigoso" –crava Brown em uma fala de um show dos anos 1990, um de uma tonelada estonteante de materiais de arquivo usada aqui.

De fotos de aniversários e churrascos a vídeos de celular feitos há dez anos, tudo no documentário é vivo. O roteiro se esmera em dar rosto e nome a todos os invisibilizados de lugares como o Capão Redondo.

Em um destes vídeos de arquivo, uma imagem linda: a do grupo pegando seu primeiro avião fretado para um show. Um avião lotado com negros retintos, príncipes indo ganhar dinheiro. 400 anos atrás, seus antepassados chegavam ao Brasil acorrentados em caravelas.

Sobre "Sobrevivendo no Inferno", álbum que imortalizou os Racionais, transformou-se em livro pronto para uma Academia de Letras, "Racionais: Das Ruas de São Paulo pro Mundo" revela o que já foi dito aqui no Quadro-Negro. Mano Brown demorou, mas um dia percebeu que o álbum é mais um fetiche de pessoas brancas eruditas do que algo que se comunique com a favela.

Corpo negro e poça de sangue são clichês que pouco fazem pela autoestima do periférico e que não quero para mim, diz ele ao explicar o retiro e agora a volta dos Racionais aos palcos.

Ele reconhece que a favela não é mais a mesma. Que é propositiva. Que está procurando ser independente. Os integrantes dos Racionais já têm 50 anos de idade. Mas a juventude preta de cabelo colorido e broche e brios de Marielle vem aí disposta a aparecer.

Fazer como os Racionais fizeram quando apareceram.

Mostrar que a cara de São Paulo não é a de Roberto Justus.

É, na verdade, a de Mano Brown.

Que como a juventude preta que o admira, e para quem compõe, apareceu para salvar a cidade.

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