Que imposto é esse

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Que imposto é esse - Eduardo Cucolo
Eduardo Cucolo
Descrição de chapéu
Cláudio Moretti

Alinhamento à OCDE tem potencial para inaugurar nova fase ao contencioso tributário

MP sobre tributação de multinacionais aguarda sanção do presidente Lula

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Cláudio Moretti

Sócio de tributário do Trench Rossi Watanabe

Recentemente aprovada pelo Senado Federal e ainda aguardando sanção presidencial, a medida provisória nº 1152/2022 sobre preços de transferência, além de revogar o regime de margens fixas, determina adoção nas operações internacionais entre partes relacionadas do chamado regime "arm's length", apregoado pela OCDE como condição necessária a que se evite a dupla ou a não-tributação, bem como prejuízos a um ambiente global de livre concorrência.

Homem de terno e gravata
Cláudio Moretti, sócio de tributário do Trench Rossi Watanabe - Divulgação

De acordo com o regime "arm's length", o preço praticado em uma operação entre partes relacionadas —empresas de um mesmo grupo, por exemplo— deve comparar-se ao preço que seria praticado em situações equivalentes, estabelecidas entre partes independentes. Assim, o lucro apurado nessas operações deve ser alocado a cada uma das partes contratantes com base em uma análise de riscos e funções, e tributado, a partir dessa alocação, pelas jurisdições de suas respectivas residências.

Exemplificativamente, se uma empresa brasileira exporta determinado produto para sua controladora nos Estados Unidos, que por sua vez revende esse produto no mercado interno ou o reexporta para terceiros, quanto menor for o preço praticado na exportação do Brasil, maior será o lucro da controladora americana. E vice-versa, uma vez que o preço praticado na revenda para terceiros necessariamente será o preço de mercado, sobre o qual não se tem controle.

Adotado o "arm's length" para definição do preço da operação, a distribuição do lucro tributável se dará a partir de uma análise comparativa com os preços praticados no mercado, ficando cada jurisdição com a parcela de lucro que rigorosamente seria definida em um mercado de livre concorrência. Até aí tudo muito justo!

Os desafios surgem na determinação e alocação do lucro apurado na transação controlada. A escolha do método mais apropriado e as análises com base nas quais se faz não só o delineamento da operação como também a própria alocação do lucro é um processo constituído de julgamentos relativos, propício a divergências entre o contribuinte e o fisco, e entre os fiscos das jurisdições em que residem os contribuintes.

Por exemplo, se um contribuinte brasileiro produz um produto a partir de tecnologia desenvolvida por sua controladora sediada em outra jurisdição, pode o fisco dessa jurisdição entender que o valor dos royalties pagos pela brasileira está aquém do valor que seria cobrado de terceiros não relacionados. Nesse caso, parte do lucro da brasileira deveria ser alocado à controladora estrangeira. Um ajuste para aumento da base de cálculo do imposto de renda da controladora deveria então corresponder a um ajuste redutor da base de cálculo da empresa brasileira, sob pena de haver dupla tributação do grupo econômico. A hipótese inversa também é possível. O fisco brasileiro pode entender que o contribuinte brasileiro tem função relevante para valorização do intangível, de tal forma que serviços devessem ser cobrados pela brasileira.

Alinhada à OCDE, a nova regra de preços de transferência traz instrumentos para afastar a ocorrência de litígios onerosos a todos os envolvidos nessa disputa em torno do lucro tributável. Porém, todos exigem uma postura flexível por parte da administração fazendária. Esse será o segredo do sucesso das novas regras, pois o contribuinte brasileiro, ao longo dos anos, considerando o volume de disputas tributárias existentes no Brasil, mostrou-se fazer jus ao hino nacional —"se ergues da justiça a clava forte, verá que um filho teu não foge à luta". Estudo do Conselho Nacional de Justiça revela que no ano de 2020 haviam cerca de 77 milhões de processos ativos no Judiciário, sendo aproximadamente 40% deles de natureza tributária.

No sentido de reduzir pontos de fricção, a nova lei prevê a possibilidade de instauração de processo consultivo específico em matéria de preços de transferência, o qual assegure ao contribuinte, dentre outros, os critérios de seleção do método mais apropriado, a escolha de comparáveis e ajustes de comparabilidade, o que de fato poderá trazer certa segurança na determinação dos preços de transferência.

Contudo, há que se salientar que não se trata de procedimento conciliatório para atingimento de um acordo em torno desses temas, o que evitaria contestação por parte do contribuinte. Para tanto, nessa linha, o que recomenda a OCDE em suas diretivas é a adoção pelos estados de regras que viabilizem os chamados Acordos de Preços Antecipados (APA na sigla em inglês), os quais deverão ser alcançados através da cooperação entre fisco e contribuinte e, preferencialmente, de todas as jurisdições envolvidas.

A recomendação volta-se aos APAs bilaterais ou multilaterais. O processo de consulta na nova regra brasileira está muito longe de toda essa interação e a rede de acordos de bitributação do Brasil é muito tímida, o que reduz significativamente a eficiência do procedimento, o qual poderá inclusive ser objeto de judicialização caso o contribuinte venha a divergir da resposta que lhe for dada.

Desde que haja acordo de bitributação, o novo regramento também prevê a possibilidade de o contribuinte requerer a instauração de procedimento amigável (MAP na sigla em inglês), para revisão de ajustes de ofício determinados pelo fisco. Mais uma vez trata-se de procedimento com interação mínima do contribuinte, limitada ao requerimento para instauração de negociação entre os estados contratantes, e que ficará a critério do fisco brasileiro, o que condiciona a eficácia do instrumento à sensibilidade do fisco quanto aos reclames do contribuinte.

Caso o fisco brasileiro siga focado em objetivos arrecadatórios imediatistas, a reação do contribuinte certamente será bater às portas do Judiciário. Além disso, como não existe obrigação para que o fisco brasileiro entre em acordo resolutivo do conflito com o outro estado contratante e como as convenções celebradas pelo Brasil não preveem a possibilidade de arbitragem, não haverá qualquer pressão para que os estados contratantes busquem uma solução consensada. Daí que, mais uma vez, uma postura flexível por parte do fisco brasileiro será decisiva.

Tudo isso, porém, não invalida o reconhecimento de que as novas regras colocam o Brasil em linha com a OCDE. Entretanto, sua eficiência estará a depender de um comportamento flexível por parte do fisco brasileiro, o que evitará ingressarmos em uma era de complexos conflitos. Por outro lado, a adoção de uma postura conciliatória, conforme também recomendado pela OCDE, oferece aos investidores estrangeiros um ambiente mais confiável e propício a novos investimentos que nos coloquem de fato nas cadeias globais de valor.

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