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Descrição de chapéu indústria

O doce sonho que virou pesadelo

Criado pela Lacta em 1938, bombom Sonho de Valsa não é mais o mesmo

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Douglas Nascimento
São Paulo (SP)

Se tem uma coisa que deixa um adulto aborrecido, é perder alguma referência de sua infância. O chamado "sabor de infância" pode não ser o mais apurado, reconheço. Contudo, são essas lembranças que acabam por se transformar em hábitos de consumo e, muitas vezes, tradição. Foi assim com diversos doces, salgadinhos e bolachas que marcaram minha adolescência e não estão mais presentes nos tempos atuais.

Filho de dono de padaria do bairro do Limão, não faltavam doces e chocolates em casa. Dos que me recordo da tenra infância, vários deles não existem mais: Surpresa, Kri, Urso Branco e por aí vai. Mas um deles que se fez presente na minha infância, adolescência, vida adulta ainda está por aí: o Sonho de Valsa, o bombom que junto com o Diamante Negro fez da Lacta conhecida aos quatro ventos. Contudo, hoje ele é um pesadelo que vai da embalagem ao sabor, passando pelos ingredientes. Vou contar como uma multinacional destruiu um símbolo da indústria alimentícia brasileira.

propaganda antiga
Publicidade para jornal do bombom "Sonho de Valsa", da Lacta, no ano de 1956 - Divulgação

MAS ANTES...

Vocês devem ter lido recentemente a polêmica com outro chocolate famoso: o Toblerone. O saboroso chocolate suíço, cuja marca é do grupo estadunidense Mondelez, perdeu o direito de usar na embalagem o tradicional pico da montanha Matterhorn, que além de ilustrar a arte do produto é também um dos símbolos mais conhecidos da Suíça. Isso pelo fato de a multinacional estar mudando sua fábrica daquele país para outra, na Eslováquia, a partir de julho.

Chocolate Toblerone cuja embalagem mostra um urso escalando o montem Matterhorn, local é símbolo da Suíça - Getty Images via AFP

A medida que visa baratear os custos do produto –imagine você a diferença entre o salário de um operário suíço e um eslovaco– foi um ato da Mondelez que não saiu de graça para a empresa. Afinal, em terras suíças vigora uma lei chamada Swissness Act, que controla rigidamente como e quem pode estampar símbolos nacionais em seus produtos.

A mudança da embalagem, sem dúvida alguma, irá afetar o faturamento da gigante controladora da marca, pois o consumidor lá fora é bem mais exigente que o brasileiro. Mas por que eu falo disso? Aqui no Brasil a mesma fabricante do Toblerone, a Mondelez, simplesmente destruiu a imagem de um dos carros-chefes da empresa, alterando da embalagem aos ingredientes, sem qualquer respeito à história de um produto que tem 85 anos de estrada: o Sonho de Valsa.

AS ORIGENS DO FAMOSO BOMBOM

Até a segunda metade da década de 1930, bombons não eram fáceis de achar e muito menos baratos. Quase na totalidade importados, eram encontrados em casas especializadas em artigos estrangeiros, onde eram vendidos em caixas caras e delicadas. Aos poucos, cafés e também estabelecimentos chiques passaram a oferecer o produto em potes de vidro, já que os mesmos não vinham embalados individualmente. Foi em 1938 que essa história começou a mudar.

bombom sonho de valsa
Primeira embalagem do bombom "Sonho de Valsa" em 1938. O celofane era totalmente transparente e o bombom embrulhado manualmente. - Divulgação

Naquele ano a Lacta apresentou sua grande novidade: o bombom individual nacional. Era o nascimento do Sonho de Valsa, que inicialmente era vendido basicamente nas "bombonnières" e consumido quase que totalmente por mulheres. Neste primeiro momento, o produto vinha em uma embalagem mais simples, embrulhado em papel estanho vermelho e recoberto com um celofane transparente com um selo preto frontal onde estava o nome do bombom e um violão.

O Sonho de Valsa caiu rapidamente no gosto do consumidor brasileiro, e em 1942 seria repaginado para a embalagem que faria dele o bombom mais conhecido do país. Saía a embalagem de celofane transparente e entrava a avermelhada.

Bombom Sonho de Valsa
A embalagem de 1942 do "Sonho de Valsa" que com poucas alterações pontuais sobreviveu até poucos anos atrás. - Divulgação

SONHO DE VALSA, QUE NOME É ESSE?

No rótulo, além do violão entravam mais dois elementos: o casal dançando valsa e as notas musicais. E esses novos itens eram relacionados com o que o nome do produto significava: uma homenagem à opereta Ein Walzertraum (Sonho de Valsa em português), do austríaco Oscar Straus (1870-1954).

casal dançando valsa
Cartão postal do início do século 20 com referência à operta Ein Walzertraum (Sonho de Valsa) do austríaco Oscar Straus (1870-1954). - Divulgação

Foi assim que o produto percorreu todo o século 20 e até entrou no século 21, com poucas alterações na embalagem mesmo após a aquisição da empresa em 1996 pela multinacional Kraft Foods. Posteriormente, a nova proprietária fez mudanças em seu modelo de negócios e dividiu-se em duas, com a Lacta indo para as mãos da Mondelez, a mesma dona do Toblerone.

Foi aí que a coisa começou, aos poucos, a degringolar e a minha lembrança de infância foi perdendo sua referência. A Mondelez foi fazendo mudanças no produto, seja para baratear o preço ou para atualizar a marca, e o velho Sonho de Valsa foi morrendo. Se na Suíça a empresa foi proibida de usar os símbolos nacionais na embalagem, aqui ela deu de ombros para a história do produto, que é intimamente relacionada à história industrial de São Paulo.

Já em 2019, com a desculpa da empresa de "preservar a qualidade do produto", mudou completamente a embalagem, para uma que não lembra exatamente um bombom. Como se isso não bastasse, sumiram o violão e as notas musicais, presentes na embalagem do produto desde 1942.

Bombons da Lacta
Bombons "Sonho de Valsa" e "Ouro Branco" ambos criações tradicionais da Lacta. Embalagem alterada e desconexão com a tradição dos produtos. - Douglas Nascimento/São Paulo Antiga

Para quem não sabe, a mudança foi uma estratégia comercial, usando a lei brasileira em seu benefício, já que a tradicional embalagem classificava o produto como bombom ou chocolate, o que sujeitava a empresa a uma alíquota de 5% de IPI. Ao mudar a embalagem e remover o nome bombom, trocando-o para wafer, a tributação caiu para 0%.

Já o bombom, esse infelizmente não é sombra do que era antes. O Sonho de Valsa deixou de ter chocolate ao leite na cobertura, sendo substituído por "sabor chocolate", o que para o leigo pode parecer a mesma coisa, mas é um produto completamente diferente na sua composição.

Sempre que vejo a palavra "sabor" antes de algo, sei que o fabricante sacaneou seu próprio produto e junto, o consumidor. Neste caso não foi diferente, e o gosto de gordura hidrogenada é tão presente que se tornou, ao menos para este glutão aqui, difícil de consumir. O sonho virou pesadelo.

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