Se tem uma coisa que deixa um adulto aborrecido, é perder alguma referência de sua infância. O chamado "sabor de infância" pode não ser o mais apurado, reconheço. Contudo, são essas lembranças que acabam por se transformar em hábitos de consumo e, muitas vezes, tradição. Foi assim com diversos doces, salgadinhos e bolachas que marcaram minha adolescência e não estão mais presentes nos tempos atuais.
Filho de dono de padaria do bairro do Limão, não faltavam doces e chocolates em casa. Dos que me recordo da tenra infância, vários deles não existem mais: Surpresa, Kri, Urso Branco e por aí vai. Mas um deles que se fez presente na minha infância, adolescência, vida adulta ainda está por aí: o Sonho de Valsa, o bombom que junto com o Diamante Negro fez da Lacta conhecida aos quatro ventos. Contudo, hoje ele é um pesadelo que vai da embalagem ao sabor, passando pelos ingredientes. Vou contar como uma multinacional destruiu um símbolo da indústria alimentícia brasileira.
MAS ANTES...
Vocês devem ter lido recentemente a polêmica com outro chocolate famoso: o Toblerone. O saboroso chocolate suíço, cuja marca é do grupo estadunidense Mondelez, perdeu o direito de usar na embalagem o tradicional pico da montanha Matterhorn, que além de ilustrar a arte do produto é também um dos símbolos mais conhecidos da Suíça. Isso pelo fato de a multinacional estar mudando sua fábrica daquele país para outra, na Eslováquia, a partir de julho.
A medida que visa baratear os custos do produto –imagine você a diferença entre o salário de um operário suíço e um eslovaco– foi um ato da Mondelez que não saiu de graça para a empresa. Afinal, em terras suíças vigora uma lei chamada Swissness Act, que controla rigidamente como e quem pode estampar símbolos nacionais em seus produtos.
A mudança da embalagem, sem dúvida alguma, irá afetar o faturamento da gigante controladora da marca, pois o consumidor lá fora é bem mais exigente que o brasileiro. Mas por que eu falo disso? Aqui no Brasil a mesma fabricante do Toblerone, a Mondelez, simplesmente destruiu a imagem de um dos carros-chefes da empresa, alterando da embalagem aos ingredientes, sem qualquer respeito à história de um produto que tem 85 anos de estrada: o Sonho de Valsa.
AS ORIGENS DO FAMOSO BOMBOM
Até a segunda metade da década de 1930, bombons não eram fáceis de achar e muito menos baratos. Quase na totalidade importados, eram encontrados em casas especializadas em artigos estrangeiros, onde eram vendidos em caixas caras e delicadas. Aos poucos, cafés e também estabelecimentos chiques passaram a oferecer o produto em potes de vidro, já que os mesmos não vinham embalados individualmente. Foi em 1938 que essa história começou a mudar.
Naquele ano a Lacta apresentou sua grande novidade: o bombom individual nacional. Era o nascimento do Sonho de Valsa, que inicialmente era vendido basicamente nas "bombonnières" e consumido quase que totalmente por mulheres. Neste primeiro momento, o produto vinha em uma embalagem mais simples, embrulhado em papel estanho vermelho e recoberto com um celofane transparente com um selo preto frontal onde estava o nome do bombom e um violão.
O Sonho de Valsa caiu rapidamente no gosto do consumidor brasileiro, e em 1942 seria repaginado para a embalagem que faria dele o bombom mais conhecido do país. Saía a embalagem de celofane transparente e entrava a avermelhada.
SONHO DE VALSA, QUE NOME É ESSE?
No rótulo, além do violão entravam mais dois elementos: o casal dançando valsa e as notas musicais. E esses novos itens eram relacionados com o que o nome do produto significava: uma homenagem à opereta Ein Walzertraum (Sonho de Valsa em português), do austríaco Oscar Straus (1870-1954).
Foi assim que o produto percorreu todo o século 20 e até entrou no século 21, com poucas alterações na embalagem mesmo após a aquisição da empresa em 1996 pela multinacional Kraft Foods. Posteriormente, a nova proprietária fez mudanças em seu modelo de negócios e dividiu-se em duas, com a Lacta indo para as mãos da Mondelez, a mesma dona do Toblerone.
Foi aí que a coisa começou, aos poucos, a degringolar e a minha lembrança de infância foi perdendo sua referência. A Mondelez foi fazendo mudanças no produto, seja para baratear o preço ou para atualizar a marca, e o velho Sonho de Valsa foi morrendo. Se na Suíça a empresa foi proibida de usar os símbolos nacionais na embalagem, aqui ela deu de ombros para a história do produto, que é intimamente relacionada à história industrial de São Paulo.
Já em 2019, com a desculpa da empresa de "preservar a qualidade do produto", mudou completamente a embalagem, para uma que não lembra exatamente um bombom. Como se isso não bastasse, sumiram o violão e as notas musicais, presentes na embalagem do produto desde 1942.
Para quem não sabe, a mudança foi uma estratégia comercial, usando a lei brasileira em seu benefício, já que a tradicional embalagem classificava o produto como bombom ou chocolate, o que sujeitava a empresa a uma alíquota de 5% de IPI. Ao mudar a embalagem e remover o nome bombom, trocando-o para wafer, a tributação caiu para 0%.
Já o bombom, esse infelizmente não é sombra do que era antes. O Sonho de Valsa deixou de ter chocolate ao leite na cobertura, sendo substituído por "sabor chocolate", o que para o leigo pode parecer a mesma coisa, mas é um produto completamente diferente na sua composição.
Sempre que vejo a palavra "sabor" antes de algo, sei que o fabricante sacaneou seu próprio produto e junto, o consumidor. Neste caso não foi diferente, e o gosto de gordura hidrogenada é tão presente que se tornou, ao menos para este glutão aqui, difícil de consumir. O sonho virou pesadelo.
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