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Políticas de saúde no Brasil em debate

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Políticas de Saúde Mental: direito de todos e dever do Estado

O acesso aos serviços de saúde mental dependem da transparência do Executivo

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Dayana Rosa Luciana Barrancos

No Brasil, os casos de depressão já ultrapassaram os casos de diabetes e crises de ansiedade em ambientes escolares foram registradas nos últimos meses. Negligenciada há muito tempo, estes são apenas dois exemplos de como anda a saúde mental dos brasileiros em um contexto ainda pandêmico. Diante da relevância do tema e buscando compreender quais são os serviços e programas do Poder Executivo oferecidos à população, o IEPS e o Instituto Cactus elaboraram um documento com dados inéditos1 e atualizados sobre o cenário da política de saúde mental nos últimos anos, que serve também para aproximar as pessoas dos serviços disponíveis no Sistema Único de Saúde (SUS) e esclarecer sobre suas funções.

Apesar do Ministério da Saúde colocar em seu site algumas informações sobre a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), esse serviço não é facilmente encontrado e nem é facilmente compreendido. Assim, abreviações como UBS, CAPS, SRT, PVC e UA compõem a sopa de letrinhas que é servida timidamente e de fácil compreensão apenas para gestores ou especialistas no assunto.

Diante da dificuldade de acesso de informações consolidadas e atualizadas em um só espaço, foram reunidos todos os resultados em um só documento, o "Cenário das Políticas e Programas Nacionais de Saúde Mental". O relatório apresenta informações sobre os serviços existentes de forma simples e transparente para facilitar o acesso da população e o trabalho de gestores e pesquisadores, e assim fortalecer a construção de políticas baseadas em dados e evidências. O documento também dispõe de um glossário com os principais termos e abreviações no tema.

A efetividade de políticas intersetoriais depende de uma comunicação transparente entre os Ministérios. - Roque de Sá/Agência Senado


De acordo com a Constituição Federal brasileira, cabe ao Poder Executivo governar o povo e administrar os interesses públicos, o que, no campo da Saúde Mental, se dá principalmente pelo Ministério da Saúde, mas também por outros Ministérios como o Ministério da Cidadania, o Ministério da Educação - uma vez que é princípio da área a interdisciplinaridade.

Mudanças Recentes

Este Cenário pretende trazer uma visão completa, mas não exaustiva, do panorama da saúde mental no Brasil. As políticas e programas do Executivo seguem se atualizando e é importante que essas informações sigam sendo monitoradas. Exemplo disso é que, no dia 20 de junho, o Ministério da Saúde reconfigurou o seu funcionamento, trazendo algumas mudanças relevantes de governança e organização como o fim da Coordenação-Geral de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas. O mesmo ocorreu com a Coordenação destinada às políticas de saúde para pessoas com deficiência, sendo que pela primeira vez o regimento da pasta não cita esta política.

Tendo como princípio norteador a importância de se trazer informações de qualidade e atualizadas, como ferramentas para garantir a participação e o controle social, a construção de políticas baseadas em evidências e o acesso aos serviços públicos, é importante que as discussões participativas e democráticas se mantenham vivas para que as políticas de saúde mental sejam feitas com qualidade. O Cenário pode ser ferramenta para isso e destacamos, abaixo, algumas das principais considerações e reflexões que o documento consolida.

Serviços com a mesma função estão recebendo investimentos diferentes

A Atenção Residencial de Caráter Transitório tem como objetivo oferecer acolhimento voluntário e cuidados contínuos para pessoas com necessidades relacionadas ao uso de crack, álcool e outras drogas, em situação de vulnerabilidade social e familiar e/ou que demandem acompanhamento terapêutico e protetivo. O serviço deverá garantir os direitos de moradia, educação e convivência familiar e social e, atualmente, ele pode se dar através das Unidades de Acolhimento ou das Comunidades Terapêuticas (CT) - as Unidades de Acolhimento estão alocadas no Ministério da Saúde e as CTs são entidades da sociedade civil ligadas ao Ministério da Cidadania, apesar de também realizarem internações psiquiátricas.

No entanto, os investimentos direcionados para esses serviços diferem: o Cenário apurou que, entre 2017 e 2021, 13 estados não possuíam uma Unidade de Acolhimento sequer, ao passo que, para realizar o mesmo tipo de serviço, as CTs receberam um aumento de mais de 100 milhões de reais nos últimos 3 anos. De acordo com o Ministério da Cidadania, foram destinados R$ 34.051.239,74 às CTs em 2019; R$ 117.875.652,63 em 2020; e, em 2021, foram gastos R$ 135.816.631,90.

Monitoramento de internações psiquiátricas não estão centralizadas no Ministério da Saúde

Quando perguntado sobre as CTs, o Ministério da Saúde respondeu, via Lei de Acesso à Informação, que "a Secretaria Nacional de Cuidados e Prevenção às drogas - SENAPRED, vinculada ao Ministério da Cidadania, passou a ser responsável pelo credenciamento, fiscalização e financiamento de vagas em Comunidades Terapêuticas Acolhedoras". Quando perguntado sobre a quantidade de pessoas internadas em Hospitais Psiquiátricos de Tratamento e Custódia, que são destinados a pessoas com transtorno mental em conflito com a lei, mas que são inimputáveis ou semi-imputáveis (ou seja, que não podiam entender que o ato que cometeram era um crime), o Ministério da Saúde também redirecionou a pergunta: "A Política de Saúde Mental não preconiza as Normativas dos Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico. Essas informações são disponibilizadas nas secretarias dos Estados que dispõe do Conselho Nacional de Justiça (CNJ)".

De acordo com as respostas recebidas, há uma intenção de articulação com as pastas da Cidadania e da Segurança, mas não encontramos registros suficientes sobre o monitoramento das internações psiquiátricas nas CTs e nos Hospitais de Custódia. Se considerarmos que na política vigente a internação deve ser utilizada como último recurso, é elementar que o Ministério da Saúde disponibilize essas informações, mostre como a Lei está sendo aplicada e assim evite possíveis violações como já foi verificado em instituições desse tipo.

Assim, o Cenário não foi capaz de responder, com informações do Ministério da Saúde, quantas pessoas estão internadas nesses lugares. Para efetivar políticas intersetoriais é fundamental que as informações sejam passadas de forma transparente entre as pastas, garantindo que todos os órgãos competentes tenham acesso às mesmas informações e assim consigam realizar um planejamento compartilhado e consistente.

Reinserção Social parando no meio do caminho

Até março deste ano, o Ministério da Saúde tinha o Programa de Desinstitucionalização, que era responsável por promover a reabilitação psicossocial de pessoas que estiveram internadas por muito tempo, restabelecendo vínculos familiares, por exemplo. Em 2003, o Governo brasileiro criou os Serviços Residenciais Terapêuticos, uma alternativa de moradia para as pessoas com transtornos mentais que não possuem famílias que desejem ou tenham condições de recebê-los de volta.Cada uma dessas casas contava com uma equipe dos SUS para dar o suporte necessário de tratamento e também de promoção da autonomia dos moradores. O Cenário apurou que, até o início do ano, havia 6.074 pessoas morando em 801 Serviços Residenciais Terapêuticos. Entretanto, recentemente o Governo Federal extinguiu o financiamento dessas equipes e, desde então, ainda não temos informações sobre o que será feito com essas pessoas.

A saúde da população em situação de rua tem sido negligenciada

Transtornos mentais podem ser causa e/ou consequência de estar em situação de rua, e essa condição pode criar e/ou agravar quadros de saúde. O serviço que tenta resolver esse problema são os Consultórios na Rua, que foram instituídos pela Política Nacional de Atenção Primária, em 2011, e visam ampliar o acesso da população em situação de rua aos serviços de saúde. Suas equipes estão adaptadas a esse contexto, realizando consultas itinerantes e desenvolvendo ações articuladas com as Unidades Básicas de Saúde da localidade.

De acordo com o Cenário, em 7 anos, apenas 33 Equipes de Consultório na Rua foram instaladas em todo o país. Contudo, o contexto é de necessidade de investimentos, pois o número de pessoas em situação de rua mais que dobrou. O IPEA estimou que, em 2017, mais de 101.000 pessoas viviam nas ruas e, em 2020, esse número chegou a 221.869.

O direito à Saúde Mental pode ser porta de entrada para outros direitos

Promover saúde mental ou garantir o direito das pessoas com transtorno ou em sofrimento mental é mais do que promover bem-estar. A saúde mental é um tema central que impacta diversas esferas da vida. Quando o Estado aumenta o alcance das políticas públicas a partir de uma visão mais inclusiva e estratégica, abre-se a porta de acesso a outros direitos, como moradia, alimentação e informação.

Apesar do grande número de estudos sobre Saúde Mental, ainda persistem lacunas importantes, se consideradas as fases de implementação, monitoramento e fiscalização das políticas públicas da área. A falta de dados disponíveis, atualizados e de qualidade, dificulta o acompanhamento de processos importantes e necessários para se avançar. Saber o recurso destinado à RAPS por equipamento; a quantidade de CAPS e Unidades de Acolhimento habilitados no país e sua evolução; o número de moradores em SRTs; e o quantitativo de internações e altas em HCTP são exemplos de informações que poderiam basear, com evidências, políticas públicas comprometidas com a ampliação do acesso ao cuidado à saúde mental.

Com o Cenário, foi possível reafirmar que o SUS possui uma ampla rede de serviços de Saúde Mental, mas essa informação precisa chegar de forma simples à população, sendo ela capaz de identificar suas necessidades e qual serviço acessar. Da mesma forma, gestores e pesquisadores precisam de dados transparentes, descritivos e atualizados para aperfeiçoar os atendimentos e serviços já existentes.

Para isso, a interdisciplinaridade tem que ser feita de forma articulada e com responsabilidades definidas e consistentes. É princípio do SUS o intercâmbio entre diferentes áreas do conhecimento e da gestão para o aprimoramento das políticas públicas e também para a compreensão das diversidades. Quando o assunto é saúde mental, a existência dessa diversidade pode ser tão preponderante que a aversão a ela, traduzida muitas vezes como estigma nas nossas relações cotidianas e em medidas extremas como a exclusão e o isolamento. Diante da gravidade e urgência do assunto, precisamos de políticas amplas de informação e cuidado e o Poder Executivo deve ser transparente sobre suas ações e colocar na vitrine, com muito orgulho, tudo que o SUS tem a oferecer.

Para sugestões de pauta, parcerias e comentários, entre em contato através dos e-mails contato@ieps.org.br e contato@institutocactus.org. Até o próximo Saúde Mental em Pauta!

1. Parte dos dados contidos no documento foram obtidos através do recurso à Lei de Acesso à Informação, que regulamenta o direito ao acesso dos cidadãos às informações públicas.

Dayana Rosa é pesquisadora de políticas públicas do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS), administradora pública, mestre e doutora em Saúde Coletiva (IMS/UERJ). Luciana Barrancos é gerente executiva do Instituto Cactus, graduada em Direito e Administração de Empresas pela FGV e com MBA por Stanford. 

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