Saúde em Público

Políticas de saúde no Brasil em debate

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Saúde mental é questão de vida ou morte

Políticas de valorização e capacitação de agentes públicos são fundamentais para abordagens mais humanizadas às pessoas com transtorno mental

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Dayana Rosa Luciana Barrancos Chenya Coutinho

Genivaldo de Jesus Santos, 38 anos, morreu asfixiado em maio, vítima de uma ação da Polícia Rodoviária Federal (PRF) na cidade de Umbaúba, no interior de Sergipe. Policiais imobilizaram e trancaram Genivaldo em uma viatura da corporação e jogaram uma bomba de gás dentro do veículo. Genivaldo tinha esquizofrenia e foi abordado por profissionais despreparados.

Acolher ou abordar alguém com algum tipo de transtorno mental pode não ser tão simples para a maioria das pessoas. Muitas vezes, o preconceito e o estigma com esse grupo, e outros que estão vulnerabilizados, afetam o contato e o modo como esse primeiro acolhimento será feito. Lidar com o sofrimento mental de forma adequada e cuidadosa é um desafio também para as políticas públicas, sendo uma tarefa para profissionais de diversos setores, como os agentes de segurança pública. Obviamente, Genivaldo poderia ter sido abordado de outra forma e sua morte evitada. Mas como promover políticas públicas que sejam capazes de humanizar relações e, em última instância, ampliar a proteção à vida e ao cuidado digno?

Mulher segura cartaz escrito "Justiça por Genivaldo" durante protesto em São Paulo em memória de Genivaldo de Jesus Santos, morto durante abordagem de policiais rodoviários federais em Umbaúba (SE). - Foto: Nelson Almeida/AFP

Segundo o Plano de Ação para a Saúde Mental adotado pela OPAS, a falta de treinamento dos profissionais é um dos principais desafios a serem enfrentados na área. No entanto, quando falamos de saúde mental, não se trata apenas de capacitar psicólogos e psiquiatras, e sim de todos os profissionais que interagem com pessoas em sofrimento ou com transtorno mental. Aos 37 anos, Mário Travassos veio a óbito em menos de 24 horas após dar entrada em uma clínica psiquiátrica particular no Rio de Janeiro, em 2017. Um enfermeiro e um técnico de enfermagem foram responsabilizados pela morte, que decorreu de uma contenção física indevida.

A falta de acesso ao cuidado em saúde mental é também acentuada pela falta de profissionais de saúde capacitados para tanto. Há uma lacuna relevante de profissionais especialistas em saúde mental, como o caso de psicólogos e psiquiatras, e uma distribuição bastante desigual no território - por exemplo, o percentual de médicos especialistas em Psiquiatria, em relação ao total de médicos especialistas é de 2,3 no Brasil, enquanto a média dos países da OCDE é de 4,9. No Brasil, a região sudeste tem 5x mais psiquiatras por 100 mil/habitantes do que a região norte.

Psiquiatra Psicólogos
Norte 1,09 18,44
Nordeste 2,59 25,02
Sudeste 5,81 41,61
Sul 6,13 48,88
Centro-Oeste 3,97 40,26

Fonte: CNES/TABNET, junho de 2021.

O primeiro passo para ampliar o acesso ao cuidado através de políticas públicas de saúde mental é valorizar os trabalhadores da área, como foi enfatizado na Agenda Mais SUS. No âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), o preparo das equipes que prestam atendimento às pessoas com transtorno mental está diretamente relacionado à situação de trabalho existente: a grande maioria dos profissionais da área possui vínculos precários de trabalho, atrasos salariais e falta de infraestrutura para exercerem suas atividades. O estabelecimento de vínculos mais seguros promove um ambiente de trabalho mais saudável e consequentemente um melhor acolhimento de saúde mental, seguindo a máxima de cuidar de quem cuida.

Isso pode ser promovido através da implementação de um Plano de Cargos, Carreiras e Salários para os profissionais da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), incluindo a regulamentação das cuidadoras, oficineiros e redutores de danos. Sem essa valorização, os profissionais, muitas vezes submetidos a múltiplos vínculos trabalhistas, também adoecem e ficam incapazes de cuidar de outras pessoas. A pesquisa da Fiocruz intitulada "Trabalhadores Invisíveis" mostrou como os profissionais de saúde ficaram com a própria saúde mental vulnerável durante a pandemia: 65% dos trabalhadores entrevistados apresentaram sintomas de transtorno de estresse, 61,6% de ansiedade e 61,5% de depressão.

  • Saiba mais sobre essas e outras propostas para a Saúde Mental na Agenda Mais SUS.

O segundo passo é a qualificação profissional. Uma vez que os trabalhadores estão valorizados e motivados, aí sim, ações de qualificação podem ser mais eficientes. Para este passo, propomos quatro abordagens estratégicas:

  1. Expandir o cuidado também para os não especialistas e qualificar também os profissionais e demais trabalhadores das unidades de saúde da Atenção Primária, com o objetivo de identificar e acolher o sofrimento no cotidiano dos usuários do SUS;
  2. Aos profissionais de saúde mental, tendo como principal diretriz a Reforma Psiquiátrica;
  3. Aos policiais, bombeiros e demais trabalhadores de serviços de urgência, como o SAMU e hospitais de emergência, orientando pela abordagem desarmada e evitando a contenção física desnecessária;
  4. Aos gestores públicos, avançando na compreensão da necessidade de priorizar políticas para saúde mental. O foco de tais formações deve envolver uma perspectiva de saúde integral, multidisciplinar e intersetorial, incluindo a formação preconizando o combate ao estigma, preconceito, racismo e LGBTfobia. Para os gestores, devem incluir, adicionalmente, módulos sobre alocação de recursos, transparência, avaliação e monitoramento das políticas públicas de saúde mental.

Para promover políticas que humanizam as relações é necessário também humanizar a relação da política pública com as pessoas, valorizando seus trabalhos, reconhecendo a diferença que fazem na sociedade e a importância que têm na vida de familiares e amigos das pessoas que estão em sofrimento ou têm transtorno mental, e também daqueles que precisam de novos laços sociais - como é o caso das pessoas que saíram de longas internações psiquiátricas. Quando as políticas públicas cuidam também de quem cuida e orientam pela ampliação da vida, brasileiros vivendo mais e melhor é um resultado inevitável.

>> Para sugestões de pauta, parcerias e comentários, entre em contato através dos e-mails contato@ieps.org.br e contato@institutocactus.org. Até o próximo Saúde Mental em Pauta!

Dayana Rosa é pesquisadora de políticas públicas do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS), administradora pública, mestre e doutora em Saúde Coletiva (IMS/UERJ); Luciana Barrancos é gerente executiva do Instituto Cactus, graduada em Direito e Administração de Empresas pela FGV e com MBA por Stanford; Chenya Coutinho é enfermeira, servidora estatutária do município de Aracaju desde 2010, especialista em Saúde Mental e Atenção Psicossocial (FIOCRUZ), especialista em Gestão de Políticas Públicas Informadas por Evidências (Hospital Sírio Libanês) e mestranda em Psicologia (UFS).   

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