Genivaldo de Jesus Santos, 38 anos, morreu asfixiado em maio, vítima de uma ação da Polícia Rodoviária Federal (PRF) na cidade de Umbaúba, no interior de Sergipe. Policiais imobilizaram e trancaram Genivaldo em uma viatura da corporação e jogaram uma bomba de gás dentro do veículo. Genivaldo tinha esquizofrenia e foi abordado por profissionais despreparados.
Acolher ou abordar alguém com algum tipo de transtorno mental pode não ser tão simples para a maioria das pessoas. Muitas vezes, o preconceito e o estigma com esse grupo, e outros que estão vulnerabilizados, afetam o contato e o modo como esse primeiro acolhimento será feito. Lidar com o sofrimento mental de forma adequada e cuidadosa é um desafio também para as políticas públicas, sendo uma tarefa para profissionais de diversos setores, como os agentes de segurança pública. Obviamente, Genivaldo poderia ter sido abordado de outra forma e sua morte evitada. Mas como promover políticas públicas que sejam capazes de humanizar relações e, em última instância, ampliar a proteção à vida e ao cuidado digno?
Segundo o Plano de Ação para a Saúde Mental adotado pela OPAS, a falta de treinamento dos profissionais é um dos principais desafios a serem enfrentados na área. No entanto, quando falamos de saúde mental, não se trata apenas de capacitar psicólogos e psiquiatras, e sim de todos os profissionais que interagem com pessoas em sofrimento ou com transtorno mental. Aos 37 anos, Mário Travassos veio a óbito em menos de 24 horas após dar entrada em uma clínica psiquiátrica particular no Rio de Janeiro, em 2017. Um enfermeiro e um técnico de enfermagem foram responsabilizados pela morte, que decorreu de uma contenção física indevida.
A falta de acesso ao cuidado em saúde mental é também acentuada pela falta de profissionais de saúde capacitados para tanto. Há uma lacuna relevante de profissionais especialistas em saúde mental, como o caso de psicólogos e psiquiatras, e uma distribuição bastante desigual no território - por exemplo, o percentual de médicos especialistas em Psiquiatria, em relação ao total de médicos especialistas é de 2,3 no Brasil, enquanto a média dos países da OCDE é de 4,9. No Brasil, a região sudeste tem 5x mais psiquiatras por 100 mil/habitantes do que a região norte.
Psiquiatra | Psicólogos | |
Norte | 1,09 | 18,44 |
Nordeste | 2,59 | 25,02 |
Sudeste | 5,81 | 41,61 |
Sul | 6,13 | 48,88 |
Centro-Oeste | 3,97 | 40,26 |
Fonte: CNES/TABNET, junho de 2021.
O primeiro passo para ampliar o acesso ao cuidado através de políticas públicas de saúde mental é valorizar os trabalhadores da área, como foi enfatizado na Agenda Mais SUS. No âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), o preparo das equipes que prestam atendimento às pessoas com transtorno mental está diretamente relacionado à situação de trabalho existente: a grande maioria dos profissionais da área possui vínculos precários de trabalho, atrasos salariais e falta de infraestrutura para exercerem suas atividades. O estabelecimento de vínculos mais seguros promove um ambiente de trabalho mais saudável e consequentemente um melhor acolhimento de saúde mental, seguindo a máxima de cuidar de quem cuida.
Isso pode ser promovido através da implementação de um Plano de Cargos, Carreiras e Salários para os profissionais da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), incluindo a regulamentação das cuidadoras, oficineiros e redutores de danos. Sem essa valorização, os profissionais, muitas vezes submetidos a múltiplos vínculos trabalhistas, também adoecem e ficam incapazes de cuidar de outras pessoas. A pesquisa da Fiocruz intitulada "Trabalhadores Invisíveis" mostrou como os profissionais de saúde ficaram com a própria saúde mental vulnerável durante a pandemia: 65% dos trabalhadores entrevistados apresentaram sintomas de transtorno de estresse, 61,6% de ansiedade e 61,5% de depressão.
- Saiba mais sobre essas e outras propostas para a Saúde Mental na Agenda Mais SUS.
O segundo passo é a qualificação profissional. Uma vez que os trabalhadores estão valorizados e motivados, aí sim, ações de qualificação podem ser mais eficientes. Para este passo, propomos quatro abordagens estratégicas:
- Expandir o cuidado também para os não especialistas e qualificar também os profissionais e demais trabalhadores das unidades de saúde da Atenção Primária, com o objetivo de identificar e acolher o sofrimento no cotidiano dos usuários do SUS;
- Aos profissionais de saúde mental, tendo como principal diretriz a Reforma Psiquiátrica;
- Aos policiais, bombeiros e demais trabalhadores de serviços de urgência, como o SAMU e hospitais de emergência, orientando pela abordagem desarmada e evitando a contenção física desnecessária;
- Aos gestores públicos, avançando na compreensão da necessidade de priorizar políticas para saúde mental. O foco de tais formações deve envolver uma perspectiva de saúde integral, multidisciplinar e intersetorial, incluindo a formação preconizando o combate ao estigma, preconceito, racismo e LGBTfobia. Para os gestores, devem incluir, adicionalmente, módulos sobre alocação de recursos, transparência, avaliação e monitoramento das políticas públicas de saúde mental.
Para promover políticas que humanizam as relações é necessário também humanizar a relação da política pública com as pessoas, valorizando seus trabalhos, reconhecendo a diferença que fazem na sociedade e a importância que têm na vida de familiares e amigos das pessoas que estão em sofrimento ou têm transtorno mental, e também daqueles que precisam de novos laços sociais - como é o caso das pessoas que saíram de longas internações psiquiátricas. Quando as políticas públicas cuidam também de quem cuida e orientam pela ampliação da vida, brasileiros vivendo mais e melhor é um resultado inevitável.
>> Para sugestões de pauta, parcerias e comentários, entre em contato através dos e-mails contato@ieps.org.br e contato@institutocactus.org. Até o próximo Saúde Mental em Pauta!
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