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Rol da ANS: entre a vida e a morte

Sanção do Projeto de Lei 2.033/22 é urgente e pode salvar vidas

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Adriana Monteiro da Silva Camilla Varella Guimarães

No dia 10 de dezembro de 2019 o Ministro Luís Felipe Salomão inaugurou um novo entendimento (técnica jurídica conhecida como overruling) e alterou a jurisprudência consolidada por mais de 20 anos no Superior Tribunal de Justiça (STJ), passando a considerar o rol de procedimentos listados pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) como taxativo.

Desde então, as operadoras de saúde passaram a negar a cobertura de procedimentos médicos, criando um quadro de insegurança jurídica aos usuários da saúde suplementar (privada).

O posicionamento do Ministro Salomão foi adotado pelos demais ministros que compõem a Quarta Turma do STJ (da qual ele faz parte). Por outro lado, a Terceira Turma do STJ manteve o posicionamento, até então uniforme, de que o rol era meramente exemplificativo.

Estava criada uma situação de impasse dentro do STJ, em que se o processo fosse julgado pela Terceira Turma o entendimento seria favorável ao paciente com base na exemplificatividade do rol e se o processo fosse julgado pela Quarta Turma o entendimento seria pela taxatividade do rol, portanto em favor das operadoras de saúde.

Para solucionar esse conflito foi interposto um recurso de embargos de divergência para uniformizar e pacificar o entendimento do STJ. O recurso foi julgado no dia 08 de junho de 2022, quando a Segunda Seção – órgão colegiado que une os Ministros da Terceira e da Quarta Turma - decidiu pela taxatividade do rol.

Repita-se: desde 1998 até junho de 2022, o STJ tinha entendimento unânime que considerava a natureza do rol da ANS como exemplificativa e nenhuma operadora de saúde foi à falência nesses 24 anos.

Em fevereiro, pais, responsáveis e usuários de planos de saúde protestaram na frente do STJ, em Brasília. Na ocasião, o tribunal julgou sobre a taxatividade de ROL da ANS, que dispõe sobre os exames e tratamentos que podem ser cobertos pelos planos de saúde. Os manifestantes se acorrentaram uns aos outros na frente da sede do tribunal. - Foto: Pedro Ladeira/Folhapress

Em 2020, o lucro líquido das operadoras de planos de saúde teve alta de 49,5%, pois segundo a ANS, o lucro foi para R$ 17,5 bilhões. Com a pandemia e as medidas de isolamento, houve redução na demanda por exames, consultas e cirurgias eletivas no setor privado, o que gerou queda nas despesas, e, consequentemente, aumentou o lucro das operadoras. Enquanto o Sistema Único de Saúde (SUS) estava sobrecarregado, enfrentando a maior crise sanitária da história do país, o lucro das operadoras de saúde quadruplicou no 2º trimestre do ano de 2019, comparado ao 1º trimestre, chegando a R$ 9 bilhões.

Mesmo assim, alegando "prejuízo", "risco financeiro" e "possibilidade de falência" as operadoras de Saúde conseguiram a liberação da ANS para o maior reajuste anual desde 2000: em 2022, o reajuste dos planos de saúde individuais e familiares foi de 15,5%. Já o reajuste dos planos coletivos, que não sofre regulação da Agência, foi de até 90%.

Os usuários que começaram a sofrer com a retirada de terapias, medicamentos, home care e até com negativas de suporte para oxigenoterapia e traqueostomia, procuraram instituições de defesa de pessoas com deficiência, síndromes raras, câncer e se organizaram coletivamente na tentativa de garantir o mínimo ao consumidor da saúde privada – que é o próprio acesso à saúde.

O Projeto de Lei (PL) 2.033/22 nasceu de um Grupo de Trabalho organizado na Câmara dos Deputados com a finalidade corrigir a injustiça perpetrada pelo STJ. A aprovação se deu de forma unânime tanto na Câmara como no Senado, resultado da forte pressão popular. Quem está doente, tem pressa.

Os dados não mentem. Não há riscos financeiros para as operadoras. O risco é de morte e é dos pacientes, justamente o lado mais vulnerável na relação jurídica com as lucrativas empresas de saúde suplementar. Na decisão de 2019, o que o STJ fez foi inviabilizar, na prática, o acesso à saúde pois criou critérios cumulativos, impossíveis de serem preenchidos pelos pacientes. O voto do Ministro Villas Bôas Cueva, que complementou a posição do Ministro Luis Felipe Salomão, inverteu o ônus da prova nos processos envolvendo operadoras de saúde, transferindo-o para o consumidor, afrontando a ordem constitucional.

O Projeto de Lei 2.033/2022 trouxe uma solução técnica, justa e possível: criou um cenário intermediário entre o rol exemplificativo amplo, que vigorou de junho de 1998 (data de publicação da Lei nº 9.656/98) até junho de 2022 (data do julgamento STJ), e o rol taxativo mitigado instituído pelo STJ, dotando agora o rol da ANS de caráter exemplificativo com critérios rígidos.

A partir do PL 2.033 o consumidor deverá provar que o tratamento do qual necessita tem eficácia, à luz das ciências da saúde baseada em evidências científicas; ou que existem recomendações da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec) ou ainda recomendação de, no mínimo, um órgão de avaliação de tecnologias em saúde que tenha renome internacional. Caso o consumidor não consiga provar pelo menos um desses critérios as operadoras de saúde não estarão obrigadas a cobrir o tratamento de saúde.

Enquanto isso as operadoras não param de divulgar notícias falsas: "os planos de saúde irão quebrar", "será necessário reajustar os planos" (como se isso já não fosse feito a todo tempo), "precisaremos dividir os planos em planos do rol exemplificativo e planos do rol taxativo" (aliás, sobre isso eles tentam mover-se desde 2006, com a criação dos planos populares, PL 7.419/2006, barrados pelo Conselho Nacional de Saúde e outras instituições de controle difuso). De nossa parte afirmamos: esse discurso não passa de uma forma de ludibriar quem não está atento à verdade dos fatos.

O PL 2.033/2022 aguarda sanção do Presidente Bolsonaro. A demora resulta na morte dos pacientes. O Rol Taxativo (que ainda vigora) mata. Cabe questionar quem será responsabilizado pelos óbitos decorrentes de tamanha desfaçatez.

Adriana Monteiro é consultora jurídica da Associação Síndrome do Amor; e Camilla Varella é membro efetivo da Comissão Nacional da OAB de Direitos das Pessoas com Deficiência. Ambas são sócias do escritório Varella Guimarães, Monteiro, Nadaline e Ziotti Advogados Associados

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