Saúde em Público

Políticas de saúde no Brasil em debate

Saúde em Público -  Instituto de Estudos para Políticas de Saúde
Instituto de Estudos para Políticas de Saúde

Saúde da População Negra: o que esperar do próximo governo?

É urgente resgatar e avançar na Política Nacional de Saúde da População Negra

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Celso Ricardo Rony Coelho

A saúde da população negra voltou ao debate público e é pauta nas discussões do governo de transição. No último dia 29 de novembro, simbolicamente ainda no Mês da Consciência Negra, os grupos técnicos de Saúde e de Igualdade Racial realizaram reunião conjunta, com representantes de 42 entidades do movimento negro, para dialogar com suas lideranças sobre as proposições para a próxima gestão.

Não é novidade que o atual governo foi marcado por descaso e grandes retrocessos nas políticas de reparação histórica da população negra. Durante os últimos quatro anos, praticamente não foram destinados recursos e/ou ações de promoção à saúde a essa parcela da população historicamente marginalizada. O que se viu, pelo contrário, foi um verdadeiro ataque às políticas afirmativas.

É verdade que a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN), fruto de décadas de trabalho dos movimentos sociais, especialmente de mulheres negras, já vinha enfrentando dificuldades de implementação, apesar de alguns poucos avanços, devido à baixa aderência de estados e municípios. Um avanço, por exemplo, foi a Portaria nº 344, do Ministério da Saúde, publicada em 2017, que determinou a coleta obrigatória do quesito raça/cor por meio de autodeclaração nos serviços de saúde, mas que ainda permanece em vias de implementação.

Atualmente, a retomada da saúde da população negra à pauta nacional, por si só, já é uma nova conquista, que novamente indica a capacidade política do movimento negro no Brasil. Com essa retomada, espera-se renovar o fôlego para reativar a PNSIPN como política pública atenta à necessidade de ação afirmativa. Tanto o GT de Saúde quanto o de Igualdade Racial do governo de transição têm demonstrado esforços nesse sentido e merecem ser vistos com bons olhos, dado que dentre os representantes desses grupos há pessoas comprometidas historicamente com essa agenda tão cara à população brasileira.

Sistema de saúde deve estar atento à diversidade da população negra

No final de novembro, em um dos grandes debates do 13º Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva, que sediou momentos importantes para a luta antirracista, como o Encontro de Saúde da População Negra, a Drª. Jurema Werneck, Diretora da Anistia Internacional, já anunciava que "nossa mensagem repete um bordão lançado incansavelmente: nada sobre nós sem nós – esse nós amplo, de indígenas, negros, mulheres, pessoas LGBTQIA+, moradoras e moradores das regiões norte e nordeste e das favelas e periferias do sul e do sudeste, do campo, dos quilombos, das florestas, das águas e das cidades e não apenas homens brancos à esquerda (ou pior, à direita)".

Como se pode ver, há bastante diversidade na população negra. Assim, falar em saúde da população negra é falar da saúde das populações quilombolas, da saúde da população em situação de rua, da saúde das populações periféricas e com maiores dificuldades de acesso aos serviços de saúde, da saúde das principais vítimas de múltiplas formas de violência. Enfim, da saúde de populações que estão nas intersecções de uma série de riscos e agravos dos chamados determinantes sociais da saúde, os quais são problemas políticos, e como tais devem ser tratados e resolvidos com políticas públicas.

Em julho deste ano, a Marcha das Mulheres Negras denunciou as violências à população negra brasileira motivadas por questões de gênero e raça. O ato aconteceu na Praça da República, em São Paulo. - Foto: Bruno Santos/ Folhapress

Entendem as lideranças negras que é preciso enfrentar o racismo institucional no campo da saúde com certa ousadia, em perfeita consonância com as diretrizes e os princípios do SUS. Uma das intenções dos GTs do governo de transição é retomar e avançar ainda mais em iniciativas como o Comitê Técnico de Saúde da População Negra no Ministério da Saúde, o Programa Brasil Quilombola e o plano Juventude Viva, que tem como foco o combate à violência contra jovens, em especial os negros e as negras. É preciso implementar essas e outras ações de promoção da saúde para reduzir as iniquidades raciais e promover melhorias das condições de vida e bem-estar da população negra brasileira.

PNSIPN precisa de adesão social e compromisso de estados e municípios

Nesse contexto, um sistema de saúde forte e potente, para além das questões econômicas que o envolvem, é imprescindível. Sabemos que os desafios para a implementação de uma política como a PNSIPN são gigantes e envolvem a mobilização de diversos atores da sociedade, como os gestores e os tomadores de decisão, inclusive no Legislativo. É necessário fazer com que a PNSIPN ganhe maior adesão dos estados e municípios, afinal, sem a devida compactuação entre os entes federativos, os esforços despendidos podem ser ineptos. Nesse sentido, também é um desafio pactuar e/ou repactuar metas e indicadores para monitoramento da PNSIPN. Dentre as ações dessa política deve-se incluir aquelas de cuidado, promoção à saúde e prevenção dos agravos nas doenças mais prevalentes da população negra, como capacitações para os profissionais de saúde voltados à atenção da doença falciforme, diabetes e hipertensão, bem como campanhas e ações de conscientização da população, de prevenção e de tratamento dessas condições.

Compreendemos que, para além do discurso político, enfrentar o racismo institucional, com participação popular e ampla cooperação, deve ser uma medida essencial para ampliar e melhorar a assistência a essa população, em todas as instâncias, com a devida atenção para as desigualdades regionais e a grande diversidade presente na expressão "população negra", frequentemente considerada como uma caixinha, mas que reserva em si inúmeras outras disparidades. Aqui, mais uma vez o uso do quesito raça-cor é questão de primeira ordem para a análise, o planejamento e a condução das políticas de forma adequada.

A Constituição Federal de 1988 determina, em seu artigo 196, que a saúde é direito de todos e dever do Estado, direito esse garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos, que garantam acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação. Certamente, resgatar e fortalecer a PNSIPN, com ações práticas associadas, como tem indicado os grupos da transição, contribui nessa direção. Para tal, é preciso que o sistema funcione para todos e todas, com equidade e a devida atenção à essas questões; é preciso que a política seja ressignificada na relação com a sociedade e, aqui, é importante que os direitos sociais e as questões socioeconômicas estejam na mesa de negociação e as ações a eles direcionadas alcancem quem mais precisa.

Diante disso, espera-se pela revogação de portarias e normas que ampliaram as desigualdades contra a população negra, prejudicando seu acesso aos espaços de saúde e o atendimento nos serviços básicos, vide a pandemia de COVID-19.

Celso Ricardo é professor de Ciências Sociais e especialista em Saúde Pública pela FMU. Rony Coelho é pesquisador do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS).  

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.