Saúde em Público

Políticas de saúde no Brasil em debate

Saúde em Público -  Instituto de Estudos para Políticas de Saúde
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Descrição de chapéu saneamento

A dengue e outras arboviroses, saneamento básico e a Funasa

A despeito dos impactos positivos em saúde o saneamento segue sem ser prioridade no Brasil

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Marcella Semente Júlia Pereira Rebeca Freitas

No fim de julho, a OMS emitiu um alerta sobre o aumento recorde dos casos de dengue no mundo devido ao aquecimento global. A doença já é endêmica em mais de 100 países e, na América, o Brasil é de longe o mais afetado. São 2,3 milhões de notificações de dengue – sendo 1,2 mil classificadas como dengue grave – e 769 mortes (aumento de 73% em relação aos últimos cinco anos) no primeiro semestre. De acordo com a OMS, vetores como o Aedes Aegypti, entre outros mosquitos, são responsáveis por 17% da carga global de doenças transmissíveis e mais de 700 mil mortes por ano. Quase 80% da população mundial pode vir a ser contaminada por alguma doença transmitida por esses vetores.

Serviços de saneamento têm relação com a incidência dessas doenças. Apesar de a infestação por mosquitos acontecer em todos os lugares, o adoecimento é maior entre a população com piores indicadores de cobertura de saneamento. Em locais onde a água é escassa, as famílias precisam armazená-la em recipientes, muitas vezes mal higienizados e sem a vedação adequada, levando a se tornarem locais próprios para o surgimento dos mosquitos. Outro fator que pode levar ao aumento da reprodução desses vetores é a falta de acesso a coleta e manejo apropriado de resíduos sólidos, que abandonados em locais inadequados, armazenam água da chuva e se tornam ambientes de proliferação.

O combate de doenças como a dengue, a chikungunya e a zika, sem ações efetivas de melhorias do saneamento básico agrava o problema Os documentos governamentais sobre o tema, como o Programa Nacional de Controle da Dengue, propõem melhorias sanitárias domiciliares de vedação de depósitos de água em detrimento de ações efetivas de ampliação do abastecimento regular. No Plano de Contingência para resposta às emergências em saúde pública por Dengue, Chikungunya e Zika do Ministério da Saúde, há menções genéricas à necessidade de melhorar o saneamento nos municípios, concentrando-se em temas ligados à comunicação e mobilização social, controle vetorial e gestão. As recomendações sobre mapeamento de áreas de foco são direcionadas apenas para os Agentes Comunitários de Saúde. Ao fim, a responsabilização recai sobre a comunidade na figura do vizinho que não cumpre as medidas de controle e não sobre a falta de investimento do Estado em saneamento básico.

São José de Caiana, na Paraíba, contava em 2018 com rede de escoto na minoria das casas do município. Na foto, o esgoto aberto em meio as casas que despejam água poluída através de canos. - Foto: Bruno Santos/ Folhapress

A Lei 14.026/20, um marco legal do saneamento, estabelece que, até 2033, 99% da população tenha acesso a água potável e 90% tenha acesso à coleta e tratamento de esgotos, mas não define metas específicas para o manejo de resíduos sólidos urbanos– um dos principais problemas para transmissão de arboviroses, além do abastecimento regular de água. Em 10 anos, a parcela da população com acesso a água aumentou apenas 1,4 ponto percentual (de 82,8% para 84,2%); a ampliação da cobertura da rede de esgoto foi maior, de 7,5 p.p., mas abrange somente 55,8% da população. Enquanto o Plano Nacional de Saneamento Básico estimou em R$ 27,6 bilhões por ano o investimento necessário para a universalização do serviço, nos últimos anos, o investimento médio anual foi de R$ 16 bilhões. Além disso, as regiões mais deficitárias são as que recebem menos investimentos.

Se por um lado as cifras aparentam um investimento elevado, o retorno com a universalização do saneamento acarretaria em valores ainda mais expressivos no longo prazo: segundo dados do Painel Saneamento Brasil, do Instituto Trata Brasil, a redução dos custos com a saúde é estimada em R$ 1,25 bilhão por ano. E mais, porque o impacto de saneamento não se dá apenas em termos de saúde: estudo da OMS calcula que para cada US$ 1,00 investido em saneamento, há um retorno de US$5,50 por meio de menores custos com saúde, mais produtividade e menos mortes prematuras.

Nordeste concentra 42% da população sem acesso à água potável; investimento em saneamento na região é baixo

Nossa realidade, no entanto, se afasta desse cenário. Ainda de acordo com o Painel Saneamento, 86% das internações por malária em 2021 aconteceram na Região Norte, com três estados concentrando 63% das internações: Pará, Rondônia e Acre. Em comparação com o Sudeste, região com melhor infraestrutura e cobertura de saneamento, a incidência de internações por dengue foi 7,2 vezes maior no Centro-Oeste, 3,6 vezes maior no Nordeste e 3,4 vezes no Norte. Nas regiões Norte e Nordeste, 40% e 25% da população, respectivamente, não têm acesso à água potável e, para cerca de 45% daquelas que têm acesso, o abastecimento é irregular. Em termos absolutos, dos 33,2 milhões de brasileiros sem acesso à água, 42% vivem no Nordeste, enquanto as despesas com investimento em saneamento representam apenas metade das despesas realizadas no Sudeste. O valor de investimento por habitante que não tem acesso à água no Sudeste (714 R$/hab) foi 7 vezes maior do que no Norte (101 R$/hab) e quase 5 vezes maior do que no Nordeste (158 R$/hab).

Fundação Nacional de Saúde

Além da Secretaria Nacional de Saneamento, vinculada ao Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional (MIDR), a Fundação Nacional de Saúde (Funasa) também é responsável pela formulação e implementação de planos e programas de saneamento. Em particular, por meio de serviços de saneamento em municípios de pequeno e médio porte e em áreas rurais, quilombolas e sujeitas a endemias – como o Programa Nacional de Saneamento Rural. Cabe ressaltar, no entanto, que o relatório de auditoria da Controladoria Geral da União (CGU) de dezembro de 2022 apontou ausência de critérios de priorização de locais em situação de maior vulnerabilidade para financiamento das obras, além de ineficiência nos repasses para saneamento e falta de fiscalização e supervisão das ações. Auditorias anteriores também apontam desvios de repasses.

A Fundação, vinculada ao Ministério da Saúde – antes ao Ministério das Cidades, e brevemente extinta no início do atual governo – é alvo constante de disputa política devido à destinação de emendas orçamentárias para obras de saneamento nos municípios – e à falta de coordenação e de fiscalização das ações. Desde 2019, já passaram por sua presidência 7 dirigentes, ligados principalmente ao PSD, que manteve o controle do órgão nos últimos anos. Neste momento, o cargo faz parte da reforma ministerial do governo com o Centrão, em busca de apoio no Congresso Nacional – como tem sido historicamente – e é ativamente disputado pelo PSD, PP, Republicanos e União Brasil.

O loteamento político das superintendências, em conjunto com a falta de coordenação nacional para implementação do Plano Nacional de Saneamento Básico, faz com que a responsabilidade pelas ações de saneamento recaiam em grande medida sobre os municípios, cuja capacidade técnica e financeira é extremamente variada. Segundo a Pesquisa sobre Informações Básicas Municipais (MUNIC/IBGE), apenas 38,2% dos municípios contam com política municipal de saneamento básico e 28,7% com plano municipal. O novo marco legal traz mudanças que simplificam os ritos para viabilizar a prestação regional do serviço. Ao mesmo tempo em que vai na contramão do movimento de reestatização do serviço de saneamento em diversas cidades pelo mundo – como Paris, na França, e Berlim, na Alemanha –, ao ampliar as condições de participação privada.

Todos os anos discutimos o número de casos, internações e óbitos por dengue, chikungunya e outras arboviroses, as morbidades decorrentes dessas doenças, o combate com campanhas de mobilização social para o controle do mosquito – e, este ano, a aprovação de vacina pela Anvisa. Para que o cenário de lentos avanços no direito de acesso regular à água potável e ao saneamento básico seja transformado, a agenda política precisa encarar com seriedade o órgão responsável pelo saneamento justamente em pequenos municípios e áreas especiais. As sinalizações dadas pelo Poder Público a partir do histórico loteamento político da Funasa e pelas discussões atuais que apontam para a história se repetindo nos demonstram que estamos distantes desse cenário.

Marcella Semente é Analista de Relações Institucionais do IEPS. Julia Pereira é Analista de Relações Institucionais do IEPS. Rebeca Freitas é Diretora de Relações Institucionais do IEPS. 

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