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Descrição de chapéu aborto

Os ataques de parlamentares às deliberações da 17ª Conferência Nacional de Saúde

Críticas à Resolução n. 715/23 revelam desconhecimento sobre mecanismos de participação popular no SUS

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Rebeca Freitas Júlia Pereira Milena Rodrigues

Entre os dias 2 e 5 de julho, o Conselho Nacional de Saúde (CNS), em conjunto com a sociedade civil, promoveu a 17ª Conferência Nacional da Saúde. O CNS integra o Ministério da Saúde e é instância colegiada, deliberativa e permanente do Sistema Único de Saúde (SUS). Historicamente organizadas pelo CNS, as Conferências de Saúde ocorrem a cada quatro anos e deliberam diretrizes que contribuem para a elaboração do Plano Nacional de Saúde (PNS) e do Plano Plurianual (PPA). As deliberações são realizadas a partir de ampla participação social, incluindo movimentos sociais, instituições governamentais e não governamentais, comunidade científica e entidades de profissionais de saúde, prestadores de serviço e empresariais da área da saúde.

No dia 20 de julho, o CNS aprovou por unanimidade a Resolução nº 715/2023, que dispôs sobre as orientações estratégicas para a elaboração do PNS e do PPA e foi formulada a partir das diretrizes aprovadas na 17ª Conferência. A resolução foi criticada por parlamentares e em manifestações nas redes sociais, muitas delas revelando desconhecimento e confusão quanto ao seu significado e uso. É importante ressaltar que as diretrizes são resultados de propostas apresentadas em mais de 99 conferências livres realizadas em todo o país e promovidas pela sociedade civil — não por instâncias do Ministério da Saúde.

Três pessoas da platéia levantam o dedo indicador durante votação da plenária final da 17ª Conferência Nacional de Saúde.
Plenária Final da 17ª Conferência Nacional de Saúde - Foto: Augusto Coelho/Conselho Nacional de Saúde

Em seu relatório final, a 17ª Conferência apontou 245 diretrizes. Entre elas, duas se destacam entre as mais criticadas pelos parlamentares. A Diretriz 44, que traz a necessidade de "atualizar a Política Nacional de Saúde Integral LGBT e definir as linhas de cuidado, em todos os ciclos de vida, [...] com a garantia de acesso e acompanhamento da hormonioterapia em populações de pessoas travestis e transgêneras, pesquisas, atualização dos protocolos e redução da idade de início de hormonização para 14 anos", e a diretriz 49, que orienta "garantir a intersetorialidade nas ações de saúde para o combate às desigualdades estruturais e históricas com a ampliação de políticas sociais e de transferência de renda, com a legalização do aborto e a legalização da maconha no Brasil".

Cerca de 70 parlamentares assinaram submissões de nove Propostas de Decreto Legislativo (PDL) a favor da interrupção dos efeitos da Resolução nº 715/2023. Entre as assinaturas, 57% eram filiados ao PL e 17% ao União Brasil. Os textos pedem a suspensão dos efeitos da resolução com base no inciso V do art. 49 da Constituição Federal, isto é, indicando que a resolução seria um ato normativo do Poder Executivo que recai em "exorbitação do poder federal" e em um Estado "promotor de ideologias". Outros atacam diretamente a diretriz que cita a redução da idade de início de hormonização para 14 anos, utilizando como argumento o art. 227 da Constituição Federal que trata do princípio de proteção integral para crianças e adolescentes. Por fim, o PDL 207/2023 relembra a criminalização do aborto e da maconha e argumenta que apenas o Poder Legislativo tem competência para legislar sobre direito penal, linha seguida pelo PDL 197/2023 de autoria do Deputado Eduardo Bolsonaro (PL/SP). Além dos PDL, nove parlamentares assinaram cinco solicitações de esclarecimentos sobre a Resolução nº 715/2023, direcionadas para a Ministra da Saúde. Com isso, a Ministra se deslocou algumas vezes para o Congresso a fim de fornecer as devidas explanações, como ocorreu após sua convocação para uma Audiência Pública.

É notável uma confusão de conceitos entre o que é "legislar sobre o direito penal", o que de fato extrapolaria a competência do CNS, e o que é recomendar diretrizes para os instrumentos de planejamento do governo federal, definidas com a participação da sociedade. A diretriz 49, que fala sobre intersetorialidade e legalização do aborto e da maconha, é o maior alvo de críticas. Não é a primeira vez que uma resolução do CNS cita o aborto e recebe críticas. Em 2019, quando o médico cardiologista Marcelo Queiroga estava à frente do Ministério Saúde, o CNS emitiu a Resolução nº 617/2019, na qual a diretriz 73 cita o "direito ao aborto legal, assegurando a assistência integral e humanizada à mulher". Do mesmo modo, um grupo de parlamentares se mostrou contra o texto, pedindo sua revogação. A instituição, no entanto, manteve a resolução.

Diretrizes servem como o orientação para o governo e expressam o caráter democrático do SUS

A sociedade civil é um ator-chave para definir as diretrizes das Conferências Nacionais de Saúde, de acordo com a Lei nº 8.142/1990, que dispõe sobre a participação da comunidade na gestão do Sistema Único de Saúde (SUS). As propostas são feitas em conferências estaduais, municipais e livres, e levadas à edição nacional, que existe há mais de 80 anos, para debate e deliberação. A preparação para a 17ª CNS, mobilizou mais de 2 milhões de pessoas em conferências realizadas em todo o país, sendo 99 do tipo livres, que podem ser organizadas por qualquer segmento da sociedade civil.

As etapas preparatórias para a edição nacional, envolvem conferências que podem ser promovidas em âmbito municipal, intermunicipal, regional, macrorregional, estadual, distrital e nacional, com o objetivo de debater o tema ou eixos temáticos. Esses espaços promovem a participação popular ao incluir movimentos sociais no debate político. Na edição nacional, o evento contou com 4 mil delegados. Quando uma proposta tem pelo menos 50% mais um voto favorável dentre os presentes na plenária, ela se torna uma diretriz. Com isso, 59 propostas foram aprovadas como diretrizes da 17º CNS por um período de quatro anos. A recomendação sobre hormonoterapia e sobre a legalização do aborto e da maconha foram diretrizes aprovadas na plenária, e não se tratam de lei, tampouco uma orientação própria do governo federal.

Embora sirva para orientar as estratégias do governo federal no campo da saúde, as resoluções emitidas por esse evento não têm efeito de normativa. Apenas tratam de recomendações que o governo não necessariamente vai seguir de forma integral para o planejamento das ações de saúde. O PNS é um plano norteador para os próximos quatro anos das áreas e políticas de saúde que compõem o Sistema Único de Saúde (SUS). As diretrizes aprovadas na Conferência Nacional de Saúde orientam a elaboração do documento. Ainda segundo a definição do governo federal, o PPA, vigente por quatro anos, é um plano que define as metas, objetivos e diretrizes da administração pública. Os itens, no entanto, podem não constar no PNS: foi o caso do PNS 2020-2023, que não incluiu em seu texto final a diretriz 73 sobre o "direito ao aborto legal", contida na Resolução nº 617/2023.

Por fim, percebe-se o caráter norteador e democrático da Resolução nº 715/2023, sem nenhum efeito de lei. De forma alguma, o texto pretende modificar as leis que criminalizam o aborto ou a maconha. Para que uma mudança individual dessas leis fosse no mínimo possível em algum momento posterior, propostas de lei deveriam ser feitas e aprovadas pela maioria dos parlamentares no Congresso Nacional, ou seja, um processo feito de forma democrática, sem exorbitação do poder federal. A Conferência Nacional da Saúde se mostra, de outro jeito, embora sem a competência de legislar, um instrumento democrático relevante para entender as necessidades da população no que diz respeito ao SUS.

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Rebeca Freitas é diretora de relações institucionais do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS); Júlia Pereira é analista de relações Institucionais do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS); e Milena Rodrigues é estagiária de Relações Institucionais do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS). 

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