Saúde em Público

Políticas de saúde no Brasil em debate

Saúde em Público -  Instituto de Estudos para Políticas de Saúde
Instituto de Estudos para Políticas de Saúde

Saúde e bem-estar são direitos da população negra

Dados comprovam uma percepção cotidiana: as desigualdades raciais na saúde são reflexo de um problema crucial da sociedade brasileira

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Cristina Lopes Marcelo Tragtenberg

O cuidado com a saúde é um direito essencial de todas as pessoas, desde o nascimento até o final da vida. Todos os recém-nascidos deveriam passar por exames básicos como os testes do pezinho, da orelhinha e do olhinho para detectar em tempo qualquer anormalidade congênita. Todas as gestantes deveriam fazer um número mínimo de consultas pré-natal, assim como todas as mulheres deveriam realizar rotineiramente exames clínicos de mama e mamografia, dentre outros, para prevenção de doenças. No entanto, essa não é a realidade da maioria da população brasileira e a cor da pele tem sido fator determinante para a manutenção da saúde ou a produção de doenças, consequência do racismo que estrutura nossa sociedade.

Considerando dados da Pesquisa Nacional de Saúde (2019), cerca de duas vezes mais crianças negras não fizeram o teste da orelhinha e do olhinho na comparação com crianças brancas; 70% mais mulheres negras que brancas com 18 anos ou mais, nunca haviam realizaram exame clínico de mamas e 36% mais mulheres negras do que brancas de 50 a 69 anos, não fizeram nenhuma mamografia. A proporção de gestantes negras que não conseguem realizar o mínimo recomendado de consultas pré-natal é 76% maior que as gestantes brancas.

O Centro de Estudos e Dados sobre Desigualdades Raciais (Cedra) utiliza estatísticas oficiais e registros administrativos para produzir dados que possibilitem o aprofundamento das análises sobre a desigualdade racial no Brasil. No primeiro semestre de 2023, a organização realizou cruzamentos inéditos com bases estatísticas do DataSUS que comprovam as desigualdades de acesso à saúde e seus impactos negativos na qualidade de vida dos negros e negras deste país, desde a mais tenra idade até a velhice. Os dados evidenciam os impactos das desigualdades raciais na saúde da população negra. Essas desigualdades não são casos isolados. Constatamos diferenças ao analisarmos outros indicadores de renda, escolaridade ou ocupação, o que indica que a característica de cor/raça incide diretamente nos indicadores de desigualdades na nossa sociedade, retratando um cenário muito mais amplo e complexo de iniquidades.

O estudo analisou informações coletadas da Pesquisa Nacional de Saúde (2019), da Pesquisa Nacional de Saúde Escolar (PeNSE, 2019) e do Sistema de Informações sobre Nascidos Vivos (Sinasc, 2020). As informações analisadas permitem uma radiografia da situação de saúde da população negra brasileira, embora acredite-se que a pandemia da Covid-19 tenha agravado essa situação e acentuado as desigualdades raciais em saúde.

Apesar de invisibilizadas, a população negra sempre apresentou os piores indicadores e conviveu com a percepção cotidiana do impacto das desigualdades raciais na saúde, no bem-estar e na qualidade de vida. Isso fez com que o direito à saúde se tornasse uma das grandes reivindicações dos movimentos negros há muito tempo. Mais recentemente, o que era uma percepção cotidiana tem sido evidenciado de forma concreta nos indicadores de saúde analisados sob o quesito raça/cor. A possibilidade de levantamento desses dados é uma conquista das lutas históricas dos movimentos negros, concretizada pela Portaria nº 344 de 2017 do Ministério da Saúde que estabeleceu o preenchimento do quesito raça/cor nos formulários dos sistemas de informações em saúde.

Manifestante segura cartaz em apoio ao SUS e a vidas negras
Promover a igualdade racial não é só responsabilidade do movimento negro ou do Estado, mas de toda população brasileira - Foto: Filipe Araújo/Fotos Públicas

Também como resultados do ativismo negro, o Conselho Nacional de Saúde criou, em 2006, a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN), oficializada pelo Ministério da Saúde três anos depois. Além disso, em 2014, o Ministério da Saúde reconheceu o racismo e a discriminação racial como fatores determinantes das condições de saúde das pessoas negras e lançou uma campanha nacional de mobilização contra o racismo na rede pública de saúde.

No tempo presente, em um contexto pós crise sanitária global, agravado por uma conjuntura política de desmonte de políticas públicas do último governo, urge a retomada de políticas de enfrentamento das desigualdades raciais com a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN).

O levantamento do Cedra evidencia que o racismo sistêmico gera dificuldades de acesso a tratamentos, medicamentos e serviços de saúde e influenciam até o consumo de alimentos mais saudáveis como frutas, verduras e legumes. A proporção de negros que não consumiam verduras e legumes em, ao menos, cinco dias na semana, era 31% maior que de brancos.

Os dados também revelaram as disparidades na realização de exames básicos de rotina como aferição de pressão arterial, glicemia e colesterol ou mesmo consulta ao dentista ou oftalmologista, que são menos frequentes na população negra. Nesse contexto, são criadas as condições perversas que contribuem com o adoecimento ou dificultam a manutenção da saúde.

Até as condições de trabalho afetam mais a saúde dessa população. Segundo dados da Pesquisa Nacional de Saúde analisados pelo Cedra, os trabalhadores negros eram 40% mais expostos ao sol prolongadamente na comparação com os trabalhadores brancos.

Também alguns hábitos de lazer prejudicam mais as crianças negras. Por exemplo, a Pesquisa Nacional de Saúde Escolar aponta que o número de adolescentes negros que assistem mais de duas horas de TV por dia é 20% maior que os adolescentes brancos. A esse respeito, recente pesquisa realizada pela Universidade de Otago, na Nova Zelândia, indicou que crianças que assistem mais de duas horas de televisão por dia têm mais riscos de desenvolver vícios como apostas, tabaco e álcool.

Em resumo, os dados de saúde apresentados pelo Cedra jogam luz sobre as desigualdades em que as pessoas negras são submetidas em relação ao acesso à saúde e são fundamentais para o aprofundamento de estudos e para a elaboração e fortalecimento de políticas públicas de saúde focalizadas nessa população, desde bebês até idosos. Essa iniciativa se soma a outras como os estudos da Cátedra Çarê-IEPS, que vem desenvolvendo uma série de pesquisas sobre a temática da saúde da população negra e é uma instituição parceira no aprofundamento deste debate.

O acesso aos serviços de saúde e o cuidado da saúde física e mental não podem ser privilégios para poucos. Além de direito adquirido, trata-se de condição essencial para a dignidade da pessoa humana.

Acompanhe as iniciativas do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde também no Instagram pelo @iepsoficial

Cristina Lopes é diretora executiva do Centro de Estudos e Dados sobre Desigualdades Raciais (Cedra); Marcelo Tragtenberg é integrante do Conselho Deliberativo do Centro de Estudos e Dados sobre Desigualdades Raciais (Cedra)

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.