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Onda pró-ciência barra o avanço do negacionismo no Brasil

No ano da vacina, a maior oposição a Bolsonaro veio da ciência com a sociedade

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Soraya Smaili, Maria Angélica Minhoto e Pedro Arantes

Professores e coordenadores do SOU CIÊNCIA (Centro de Estudos Sociedade, Universidade e Ciência) da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo)

São Paulo

Contra expectativas e previsões, mais uma vez o Brasil surpreende. A população brasileira vive nos últimos dois anos um boom de interesse por ciência, ocasionado pela pandemia e seus efeitos. Apesar de sermos uma sociedade desigual e apenas 5% da população ter curso superior concluído, a maioria apoia e quer conhecer mais a ciência. A eleição presidencial de 2018 foi combustível para a indústria de fake news e deu força a discursos que negam ou distorcem a realidade e as evidências científicas e históricas. Naquele momento, parecia que entraríamos fundo em uma fase de obscurantismo.

Mas a história deu sua volta, diante da tragédia imposta pela gestão do governo federal diante do coronavírus, a mobilização foi em sentido contrário. A sociedade brasileira, majoritariamente, reagiu ao negacionismo, impulsionada pela necessidade de lutar contra a pandemia, procurar informação confiável e defender a vida. Com o auxílio de cientistas, mídia e movimentos pela vida, vimos aumentar o interesse sobre ciência, universidades e institutos que produzem conhecimento.

Foi neste contexto que instituímos o SoU_Ciência. Um centro que congrega pesquisadores e cujas atividades estão voltadas para dialogar com a sociedade sobre a política científica e de educação superior, em especial sobre o que fazem as universidades públicas, que no Brasil são responsáveis por mais de 90% da produção de conhecimento e abrigam 8 entre 10 pesquisadores em nosso país (). Em curto período de atuação, fizemos levantamentos de opinião pública, em parceria com o instituto Ideia Big Data, além de análises das mídias sociais, grupos focais e notícias. Descobrimos que o Brasil tem 94,5% da população a favor da vacinação contra Covid-19, e que a campanha antivacina liderada pelo próprio Presidente, tem apoio de apenas 5,5%. O que faz o nosso país ser diferente de países da Europa e dos EUA, onde os movimentos anti-vax são muito maiores, ainda podemos estudar. Certamente, a tradição em vacinações obtida pelo Plano Nacional de Imunizações (PNI), além do Sistema Único de Saúde (SUS), são fatores determinantes.

Em nossos levantamentos de opinião pública, 72% da população afirmou que seu interesse pela ciência aumentou com a pandemia. Isso fez 69,7% dos entrevistados declarar ter "muito interesse pela ciência" e apenas 2,2%, "nenhum interesse". Entre evangélicos e os que consideram o governo ótimo/bom, o elevado interesse pela ciência também é expressivo: 63% e 62% respectivamente. Além disso, 32,1% da população declarou ter o hábito de pesquisar em sites, blogs e canais das universidades e institutos de pesquisa na procura de informações confiáveis e, surpreendentemente, 40% gostariam de ler artigos científicos. Comparativamente, apenas 8,8% afirmam confiar no que o Bolsonaro fala sobre a pandemia, num claro distanciamento da população em relação ao presidente eleito em 2018.

Ilustração com mulheres cientistas com fundo amarelo.
Edson Ikê - Centro SoU_Ciência

A procura por informação confiável na pandemia levou a um fortalecimento do ecossistema que envolve universidades, instituições de pesquisa e cientistas na sua capacidade de comunicação e divulgação científica, com um ampliado espaço na mídia. Dois fenômenos merecem destaque. Em primeiro lugar, a competência que cientistas tiveram para se comunicar e alertar sobre o novo coronavírus e seus efeitos, utilizando redes sociais como o Twitter, e canais do YouTube, como monitorou o Science Pulse da Núcleo e IBPAD com apoio da Fundação Serrapilheira. Adicionalmente, muitos cientistas passaram a falar para a grande mídia, que por sua vez ampliou suas sessões de ciência e saúde e deu espaços para novos colunistas na área. Tem havido rápido aprendizado e maior mobilização de cientistas para utilizar os diferentes meios de comunicação.

O segundo fenômeno decorre do grande interesse da mídia e grande parte da população sobre os estudos clínicos das diversas vacinas que estavam sendo desenvolvidas em tempo recorde. Os estudos geraram grande audiência e expectativa. As universidades públicas, como a USP e a Unifesp, atuaram na coordenação dos estudos das duas primeiras vacinas licenciadas no País, ganharam enorme destaque. O Instituto Butantan e a Fiocruz, além das pesquisas, se tornaram mais conhecidos pelas pesquisas e produção dos imunizantes.

Diante de todos estes elementos, nos parece que, 120 anos depois da Revolta da Vacina, a revolta agora ocorre contra um governo que se recusou a comprar vacinas para sua população e propôs falsas alternativas, como apontou a CPI da Pandemia. A revolta em 2021, dado o enorme contingente a favor da vacina e em defesa da ciência, direcionou-se contra o governo federal e faz derreter a popularidade do presidente, passando a aprovação (ótimo/bom) de 37%, em dezembro de 2020, para 22% em dezembro de 2021, segundo o Datafolha; enquanto a rejeição (ruim/péssimo) passou de 32% para 53% no mesmo período. Dentre os fatores dessa virada de popularidade no "ano da vacina" esteve o contínuo embate presidencial contra a ciência, a partir da negação dos benefícios da vacina e da distorção nos dados. Isto vem ocorrendo de maneira renovada agora, na batalha da vacinação infantil e na fraca reação contra a variante Ômicron. Sem dúvida, em 2021 a maior oposição a Bolsonaro veio pela conscientização por meio da ciência e da aproximação dos cientistas junto à sociedade, mídia e redes sociais.

Tentando reagir nesse embate, o governo federal escalou alguns médicos e outros apoiadores para fazer o contraponto e distorcer dados científicos, criando novas interpretações fantasiosas. E atuou e segue atuando para o desmanche acelerado do sistema de ciência e pesquisa no Brasil, com ataques ao CNPq, CAPES e Finep, e cortes brutais de orçamento, cuja dimensão e impacto discutiremos noutros artigos deste blog. Ataques estes que não se reproduziram na opinião pública, já que levantamento do SoU_Ciência mostrou que somente 9% da população apoiam os cortes impostos.

Temos pela frente um grande desafio: consolidar a onda pró-ciência, para além da pandemia, e para tanto é necessária a recuperação do sistema nacional de ciência e pesquisa, com a recomposição efetiva de seu financiamento. Estamos diante da oportunidade de alcançarmos um novo patamar na relação sociedade-ciência com a formulação de políticas públicas baseadas em evidências científicas. Para isso, buscamos um "letramento científico" que colabore no combate às fake news e amplie a capacidade da população em tomar decisões racionais e fundamentadas. Os sinais são de esperança, mas nos pedem atenção e muito trabalho. A criação do Centro SoU_Ciência que terá neste blog uma voz, faz parte desse momento e pretende colaborar para fortalecer as conexões com a sociedade, na defesa da democracia, e na garantia de direitos para um novo momento da história de nosso país.

Soraya Smaili, farmacologista, professora titular da Escola Paulista de Medicina, Reitora da Unifesp (2013-2021). Atualmente é Coordenadora Adjunta do Centro de Saúde Global e Coordenadora Geral do SoU_Ciência;

Maria Angélica Minhoto, pedagoga e economista, professora da EFLCH-Unifesp, Pró- Reitora de Graduação (2013-2017) e Coordenadora Adjunta do SoU_Ciência;

Pedro Arantes, arquiteto e urbanista, professor da EFLCH-Unifesp, Pró-Reitor de Planejamento (2017-2021) e Coordenador Adjunto do SoU_Ciência.

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