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Universidades mudaram de cor

Jovens ingressantes por cotas sacudiram as universidades e podem mudar o Brasil

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São Paulo (SP)
Imagem estilizada com duas pessoas negras, uma com uma mochila e um livro na mão e outra de óculos em uma cadeira de rodas, caminham da esquerda para a direita em cima de uma seta que aponta na mesma direção. Ao redor dessas duas pessoas, outras setas apontam para o mesmo sentido e silhuetas humanas, incluindo uma pessoa com chapéu de universitária e outra com uma bengala guia, também caminham na mesma direção.
Daniel Bueno/SoU_Ciência

As fotos das turmas de formandos das universidades federais estão mudando de cor ano a ano. Especialmente nas carreiras mais concorridas, como a medicina, os jalecos brancos estão cada vez mais sendo vestidos por corpos negros. E, além deles, mais de 50% dos estudantes em todos os cursos vieram de escolas públicas, nasceram pelo SUS, andam de transporte público e não vivem nas bolhas de condomínios e serviços privados exclusivos das classes de renda alta. A mudança nesse perfil do corpo estudantil é também de mentalidades, saberes, experiências de vida e diferenças nas expectativas individuais e coletivas sobre a profissão e o país. Lembremos que os que mais sofreram na pandemia e com o desmanche dos serviços públicos, como demonstrou estudo da Unifesp na Grande São Paulo, foram os mais pobres e negros. E, por isso, eles, além de mulheres e jovens, formam a parcela da população mais crítica ao governo Bolsonaro e que expressivamente votou por um outro futuro.

Jovens, negros, de famílias de menor renda, periféricos ou de áreas rurais estão hoje mudando a cara e a história do sistema universitário em todas as regiões do país. E essa democratização e mudança qualitativa depende da continuidade das políticas de ações afirmativas, o aperfeiçoamento da lei, a adoção na pós-graduação e a garantia da reserva de vagas nos concursos públicos para negros em cargos efetivos de professores e técnicos. Afinal, tão importante como a mudança do perfil dos estudantes é também a do perfil de professores.

Fruto de um longo processo de lutas, principalmente de movimentos negros, as instituições de ensino superior pioneiras na implementação de reserva de vagas para negros, indígenas, egressos de escolas públicas de educação básica e de pessoas com deficiência foram as Universidades Estaduais do Rio de Janeiro (2001) e da Bahia (2002). Essas instituições, junto com movimentos sociais, abriram o caminho para que outras universidades públicas adotassem políticas próprias de cotas e incrementassem no número de vagas que ofereciam nos cursos de graduação.

Foram essas experiências também que deixaram evidente a necessidade de adoção de um conjunto mais amplo e consistente de ações afirmativas, como forma de efetivar o direito a esse nível de ensino, tais como investimentos em assistência e permanência estudantis.

Em 2012, decorrente de contínua mobilização popular, foi a vez do governo federal promulgar a Lei 12.711, que regulamentou a reserva de vagas para ingresso nas Instituições Federais de Educação Superior (IFES). As cotas foram destinadas a concluintes de escolas públicas de ensino médio, adicionalmente autodeclarados pretos, pardos ou indígenas e/ou com renda familiar per capita de até um salário mínimo e meio. A reserva de 50% das vagas prevista na lei foi plenamente alcançada para o ingresso no ano de 2016. Mais recentemente, essas cotas englobaram também pessoas com deficiência.

Fatos importantes decorreram desse conjunto de ações: promoção de maior diversidade entre os graduandos e aumento da qualidade da formação nos cursos das universidades. Estudos recentes do SoU_Ciência mostram claramente que, até 2012, o público matriculado nas universidades federais era bem menos diverso se comparado ao presente em 2019 – último ano com a base completa do Censo da Educação Superior que o SoU_Ciência preservou -, isto é, foi por efeito da Lei de Cotas que houve uma mudança substantiva nesse cenário.

Gráfico com dados do Censo da educação superior referentes ao período de 2009 a 2019, mostrando a variação no número de ingressantes nas Instituições Federais de Educação Superior (IFES) por cor, raça e etnia. Houve aumento entre brancos e amarelos, representados por uma linha azul clara, e crescimento ainda maior entre pretos, pardos e indígenas, representados por uma linha marrom, em ambos os casos com um pico em 2016. Uma linha cinza representa os ingressantes de cor, etnia ou raça não informados, cujo número oscilou de 2009 a 2012 e depois caiu consistentemente.
Pretos e pardos passaram a ser maioria nas Universidades Federais em 2014, dois anos após a Lei de Cotas. A partir de 2012 por exigência da lei e atuação das universidades aumentou a autodeclaração racial, antes opcional. - Fonte: SoU_Ciência com dados do Censo da Educação Superior/Inep (2009-2019).

O desempenho dos jovens ingressantes por cotas, percebemos que a diferença entre cotistas e não cotistas, quando existe, é bem pequena em todos os cursos. A taxa de permanência é também equivalente, apesar de todas as dificuldades subjacentes na vida de um estudante de menor renda – daí a importância das políticas de auxílio à permanência.

Em nosso documento de Propostas para Educação Superior, Ciência e Tecnologia na Reconstrução Nacional defendemos:

1. Ampliação da política de cotas para a graduação e a sua extensão à pós-graduação. Na pós, observamos que é necessário seguir o mesmo princípio da sub-cota racial (que segue a proporção da população de cada estado), tendo em vista as nossas análises sobre o perfil étnico-racial da ocupação das vagas de ingresso nas IFES: evidenciaram que o aumento da população preta, parda e indígena na graduação está inequivocamente atrelado à adoção da sub-cota racial.

2. Para garantir que as vagas sejam de fato acessadas pela população que a elas tem direito, é preciso incluir no corpo da lei a obrigação de se constituir comissões de heteroidentificação nas Universidades, que sejam compostas por pretos, pardos, indígenas e quilombolas;

3. É fundamental a fixação de um percentual mínimo, em separado, para o ingresso de indígenas e quilombolas, tanto na graduação como na pós-graduação. As instituições também precisam contemplar vagas para refugiados;

4. Para ganharem real concretude, todas essas medidas precisam ser acompanhadas de provisão orçamentária para auxílios permanência direcionados aos estudantes que delas necessitem e políticas de moradias estudantis;

5. A adoção de cotas por todas as instituições públicas de educação superior da rede federal, inclusive ITA e AMAN, e o incentivo às redes estaduais. Em 2019, as universidades estaduais de todo o Brasil contavam ainda com um contingente baixo de ingressantes cotistas, cerca de 17% (enquanto as Federais estão em 50%);

6. Urgente de reedição da Lei Federal 12.990/2014, prevista para expirar em 2024. Essa lei garante a reserva de 20% das vagas para negros no ingresso no serviço público, o que inclui os professores universitários. Na reedição é preciso regulamentar a adoção da cota nos concursos docentes, para coibir as estratégias para o seu não cumprimento, que infelizmente ocorrem.

A avaliação criteriosa das ações afirmativas tem mostrado o impacto e a importância dessas políticas para combater a histórica desigualdade social, racial e escolar em nosso país. No entanto, de par das conquistas de acesso às universidades, é preciso cada vez mais ampliar as políticas afirmativas destinadas à inserção profissional dos jovens, em empresas públicas e privadas, para fazermos frente aos baixos índices de acesso ao mercado formal de trabalho, em tempos de desemprego estrutural e de flexibilização das relações de trabalho.

A reconstrução do Brasil em novas bases, que viveremos nos próximos anos (ou décadas), ganhará enormemente com a participação ativa dos jovens que ingressaram nas universidades públicas por cotas e estão preparados e ávidos para construir um país mais justo, solidário, democrático e sustentável.

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