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Ciência para combater o fascismo

Como as universidades podem ajudar a fortalecer a democracia no Brasil atual

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São Paulo (SP)
Desenho mostrando três figuras semelhantes a Hitler caídas no chão, cada uma esmagada por um globo terrestre.
Andres Sandoval/SoU_Ciência

Para quem ainda tinha dúvidas de que estávamos vivendo um contexto golpista, o já histórico dia 08/01/23 comprovou cabalmente o que já se alertava, a partir de inúmeras evidências. E o novo governo foi surpreendido por falha ou golpismo dos próprios grupos de "Inteligência" de Estado que deveriam ter alertado e tomado providências – e isso precisa ser rapidamente revertido. As universidades têm muito a colaborar no combate ao golpismo e na reconstrução dessa inteligência pró-democracia, em vários níveis, como proporemos neste artigo.

Não há dúvida de que o movimento autoritário, miliciano, militar, mafioso e de traços fascistas do Brasil atual não é passageiro e nem pequeno, veio para ficar e não está de brincadeira. O que poderia ser apenas uma guerra de narrativas é, antes de tudo, uma guerra total – que se trava de forma intestina no Brasil, nos bastidores e nas ruas, sem descanso e sem recuo, de forma híbrida e combinada.

Por outro lado, é a primeira vez que um Estado Democrático de Direito no Brasil leva à prisão, em número significativo, militantes e militares de direita (no levante Integralista de 1938, quem revidou foi um ditador, Getúlio). Estamos diante de um acontecimento histórico e de seus desdobramentos. E não podemos perder o comando da situação e a unidade nacional que se formou temporariamente diante do rechaço aos eventos de 8/1.

Vamos então ao nosso ponto. Adotando o título autoexplicativo do livro de Márcia Tiburi, de 2020 (mais atual do que nunca) "Como derrotar o turbo tecno macho nazifascismo" – ou seja lá o nome que se queira dar ao mal que devemos superar – cabe aqui um complemento: qual o papel das universidades e da ciência nessa batalha? Nós, do SoU_Ciência, propomos 4 tarefas iniciais, algumas já em andamento e todas a fortalecer e organizar:

1) Estudar, pesquisar e entender a ascensão da nova-extrema-direita no Brasil, seus traços fascistas, suas conexões internacionais com o movimento global e com o subsolo estrutural da nossa história local, de predação e violência. Os estudos sobre o autoritarismo no Brasil, do mando colonial escravista, ao integralismo e às ditaduras no século XX, são já temas clássicos e relativamente bem estudados, mas a nova-extrema-direita traz desafios em vários níveis, metodológicos, de acesso a dados e da própria segurança e integridade dos pesquisadores. Ao menos, desde 2013 há uma mobilização nas universidades para estudar o protofascismo brasileiro, como movimento social, como frações e grupos golpistas, com pesquisas de campo, muitas publicações, alguns fóruns e congressos, e nascentes centros de pesquisa, formando agora redes de colaboração e criando maior organicidade, inclusive internacional, uma vez que este é um fenômeno global marcante na última década. É preciso dar visibilidade e apoio em fomento à pesquisa para fortalecer e ampliar esses grupos e trazer seus resultados mais amplamente ao conhecimento público.

2) Por isso, o segundo ponto é justamente colaborar para ampliar o debate público no tema, junto com a mídia, movimentos sociais, juventude, levando informação, mostrando o que é, quem são, o que têm feito e onde pode nos levar a ação desses grupos, apresentando casos recentes da onda reacionária global ou a história dos diferentes fascismos no mundo. Para isso, como já insistimos noutras ocasiões (ex. a exemplo do que tem ocorrido com a pandemia da Covid-19), as universidades e pesquisadores precisam sair ainda mais dos seus muros para dialogar com a sociedade, de forma clara e ágil, e atuar em colaboração com o jornalismo, o audiovisual, comunicadores e influenciadores das redes, a educação em todos os níveis, movimentos, organizações e instituições que estão na linha de frente na defesa da democracia. Precisamos criar impacto e acesso à informação confiável e atraente ao grande público, historicamente e cientificamente embasada, para fazer frente à avalanche de mentiras e de revisionismos negacionistas.

3) Revisar currículos e material didático que os anos de Governo Bolsonaro podem ter colocado em prática, propagado visões completamente distorcidas, ideológicas e sem fundamento empírico. E, isso, com o envolvimento das comunidades escolares de todos os níveis de ensino, incluindo as novas escolas civil-militares e as antigas escolas militares, que são públicas, e contam uma história fantasiosa do Brasil e da própria atuação dos militares. Além disso, é urgente a escuta à população sobre a reforma do ensino médio e sua revisão, visto que reduziu significativamente conteúdos fundamentais, a formação na área de humanidades e para a cidadania para focalizar um percurso formativo voltado a uma profissionalização estreita que visa um ingresso subalternizado no mercado, deixando em segundo plano a educação cidadã para a democracia. Isso envolve inclusive a formação de valores para a convivência democrática, a aceitação da diferença, a tolerância, a forma de construir consensos, solidariedade e cooperação – e não é a restrição à convivência em um modelo "tradicional de família brasileira" que fará isso, "em casa", como prega a extrema-direita.

4) Formulação e execução de políticas públicas claras, onde as universidades irão colaborar com a inteligência para debelar os agentes e organizações golpistas e neofascistas no Brasil, suas células, ideólogos, financiadores e organizações criminosas. Somente uma ação coordenada com os governantes, interministerial e poder legislativo poderá de fato criar um ações de mudança do ambiente antidemocrático. O dia 8/1 deixou claro que o sistema de inteligência de Estado está contaminado e foi cooptado por forças golpistas. É preciso recompor essas equipes, o que não é tarefa fácil, por estarem umbilicalmente vinculados às forças autoritárias e/ou militares. Por isso, as universidades devem constituir uma rede estrutural de apoio, com seus Observatórios e Centros de Pesquisa que estudam grupos neonazistas e milícias; forças policiais e militares; propagadores de ódio e fake news nas redes sociais; esquemas de corrupção, lavagem de dinheiro e evasão de divisas; predação ambiental e grilagem; crimes contra movimentos sociais e indígenas; e os financiadores disso tudo.

Uma chamada do atual governo e instituições de Estado, envolvendo diversos Ministérios, pode criar uma rede de colaboração em inteligência, pesquisa e construção de evidências para a atuação mais ágil e embasada do Ministério Público Federal, da Polícia Federal e de órgãos de investigação, além da construção de políticas públicas preventivas, formativas e combativas para o longo prazo. Vamos juntos e juntas, vamos com força. Nossas universidades e a ciência ocupando o seu lugar estratégico não só para a produção de conhecimento, para a solução dos problemas do país, mas também para a reconstrução dos valores democráticos e para a valorização da vida.

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