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Memorial da Pandemia, por quê?

Governo, cientistas, movimentos e familiares de vítimas lançam projeto do Memorial

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São Paulo
Ilustração mostra um memorial abstrato em preto e branco, fúnebre.
Meyrele Nascimento/SoU_Ciência

Para que serve um Memorial sobre uma das maiores tragédias da história brasileira? Para começar a responder a essa pergunta é preciso ficar claro que a pandemia não foi uma catástrofe natural ou castigo divino: ela foi socialmente produzida. Foi um morticínio, um crime contra a humanidade, e mesmo um genocídio (mais uma vez, dos povos originários - mas não só: as grande vítimas foram negros e pobres, idosos e vulneráveis). O tamanho da catástrofe também não foi resultado apenas do negacionismo, da ignorância ou incompetência gerencial (que existiram, sem dúvida). Foi fruto de uma ação coordenada, de uma teia criminosa, pública, paralela e privada, de desinformação maliciosa, interessada em ganhos políticos e econômicos, em experimentos macabros e de manipulação de massas, numa combinação perversa e fatal.

A pandemia escancarou não apenas as desigualdades e racismos estruturais e institucionais da sociedade brasileira, de longa data, como também o projeto de morte, ou necropolítica, da extrema direita na condução do país: uma nação polarizada, inflamada por ódio, desinformação, armamentismo, fundamentalismo religioso, máfias e predação social e ambiental. Tornamo-nos um território assustador de decisões governamentais e de seus parceiros assassinos na contramão da ciência e da história.

No Brasil, morreram 4 vezes mais pessoas do que na média mundial. Ou seja, se a condução fosse mediana e ainda amparada pelo SUS, com a devida coordenação e financiamento, poderíamos ter tido 400 mil mortes a menos. Mas fomos transformados num laboratório trágico de experimentos humanos cruéis. A política de ódio novamente se tornou uma política de morte, de guerra híbrida e biológica, vitimando sobretudo os que foram obrigados a continuar se expondo ao vírus. E vivíamos ataques combinados à democracia e à vida, além de um neoliberalismo turbinado por "reformas" trabalhistas e da Previdência. Impressionante que, até hoje, há quem acredite na eficácia da cloroquina, na fraude nas urnas, na boa vontade dos rentistas e do agronegócio, e que não vivemos uma tentativa de golpe de Estado.

Mas a pandemia mostrou também outro Brasil: aquele que luta aguerridamente pela vida, com solidariedade, ética e ciência. A catástrofe só não foi maior porque tínhamos (e temos) o Sistema Único de Saúde, universal, capilarizado e gratuito, além de longo histórico de sucesso na política de vacinação. Contamos com a heroica atuação da grande maioria dos profissionais de saúde, que agiram até o limite de suas forças (e perdendo vidas) com ética, compromisso e seguindo a evidência científica (inclusive fazendo frente ao Ministério da Saúde e algumas secretarias de saúde e planos privados que impunham a farsa do kit covid, entre outros absurdos). Contamos com as universidades públicas, mesmo atacadas e com corte de orçamento, com seus centros de pesquisa e hospitais universitários atuando em várias frentes na garantia da vida (ver nosso painel com mais de 1 mil ações das Universidades Federais). E contamos com nossos institutos públicos de saúde, também atacados e que foram elos fundamentais na defesa da vida, como a Fiocruz e o Butantan.

Além disso, tivemos uma mobilização extraordinária da sociedade civil, seja de alguns poucos e valorosos empresários, seja de todos os movimentos populares, ONGs, comunidades e favelas, captando doações, organizando redes de apoio, cozinhas solidárias, distribuição de cestas básicas, acolhimento de familiares de vítimas, transmitindo, também, informação confiável. A grande maioria da mídia, seja ela comercial ou independente, fez uma frente importante para barrar a desinformação e trazer o depoimento, em tempo real, de cientistas e médicos sobre o que estávamos vivendo, as melhores condutas e precauções. E todas essas frentes lutaram também pela democracia. Derrotaram o vírus e o golpismo.

Reunidos por dois dias em Brasília, gestores dos Ministérios da Saúde e da Cultura (sim, ele voltou), historiadores, artistas e cientistas, movimentos sociais e entidades de familiares de vítimas, debateram em 6 mesas temáticas os objetivos, propósitos e princípios para a criação do Memorial da Pandemia de Covid-19 no Brasil, a ser instalado no Centro Cultural da Saúde, no Rio, e com unidades descentralizadas noutras regiões do país, além de um acervo digital.

Voltemos, então, à pergunta inicial: para que serve um memorial sobre a maior catástrofe recente da história brasileira? O Brasil é um país em que os donos do poder apagam seletivamente a nossa memória de forma voluntária, seja impedindo às vítimas o direito à memória e à história, seja impedindo o acesso a documentos e artefatos, recorrentemente apagados, adulterados, extraviados, perdidos. Falta-nos uma política de memória, como autoconsciência de uma nação em sua trajetória. Contar a história da pandemia será um exercício importante de memória diante do trauma, da violência de Estado, o que tem sido negado para as outras tragédias brasileiras. Por isso, pode inspirar museus sobre o genocídio indígena, sobre a escravidão, sobre as condições brutais de trabalho, sobre o massacre nas periferias etc.

Mas o Memorial é, também, um espaço de celebração da vida, de todos os que lutaram e lutam por ela. De um povo que sabe enfrentar tragédias, que resiste, mesmo contra todas as adversidades, que encontra nas quebras o sopro de vida. "Nós por nós" foi o lema e atitude para milhões - e também daqueles muitos profissionais da saúde, da ciência, da pesquisa e da assistência, que atuaram corajosamente como sempre, mas numa escala e adversidade inéditas, como guerreiros pela vida.

E, se nada trará de volta nossos familiares e amigos que se foram, o Memorial é também um grito por justiça e reparação. Que o governo passado seja levado aos tribunais pelos seus ataques à democracia e tentativas de golpe; mas que seja, também, levado pelos seus ataques à vida e o morticínio que produziu. E não só o governo: todos aqueles que participaram de um necro-sistema macabro, incluindo médicos negacionistas, planos de saúde, influenciadores etc. São os tribunais da justiça e da história que farão com que uma catástrofe como essa não se repita.

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