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Desinformação é arma política em meio à tragédia climática

Batalha de versões e mentiras mostra a mobilização de extremistas nas redes

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Páginas de jornal rasgadas sobre a lama
SoU_Ciência - Meyrelle Nascimento

A tragédia no RS se tornou palco de uma guerra cultural e um ensaio do que está por vir, nas eleições e em outras crises, catástrofes e pandemias. A batalha frenética de versões e mentiras nas redes sociais mostra um cenário em que extremistas estão altamente mobilizados para confundir e manipular a opinião pública.

No contrapelo da ciência, a desinformação tem circulado de várias formas, desde teorias da conspiração até negação dos fatos científicos. Entre as falsas narrativas mais repercutidas, destacam-se: a negação das mudanças climáticas; teorias da conspiração sobre manipulação do clima; versões messiânicas de uma justiça divina no RS; ataque ao Estado; ataque a políticos e à ação do governo federal; e, não surpreendentemente, ataque também aos militares. A "narrativa" geral da extrema direita é de que só "civil salva civil", com o apoio de "empresários solidários", enquanto todos os demais agentes públicos, incluindo as Forças Armadas, são incompetentes, corruptos e querem o mal do povo.

E não se trata apenas da voz de vítimas em desespero, mas sim de uma ação claramente orquestrada, como demonstra pesquisa do NetLab da UFRJ. Na rede de disseminação de mentiras, a participação de influenciadores e políticos extremistas (de partidos como PL e União Brasil) configura o chamado "eixo da desinformação". O laboratório de pesquisa em internet e redes sociais da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (NetLab UFRJ) lançou um relatório sobre essas práticas na tragédia do RS. Além das redes de desinformação, mapeou as campanhas de arrecadação fraudulentas, muitas delas associadas a influenciadores que compartilham perfis menores, também disseminadores de informações falsas, com pedidos de recursos sem qualquer transparência. Foi mapeada ainda a rede de influência e o papel obscuro do Instituto Cultural Floresta (que não é uma ONG ambientalista ou cultural, mas de segurança), ligado ao MBL e a empresários e políticos da extrema direita gaúcha.

De forma ampla, os extremistas têm usado as redes para afirmar que as mudanças climáticas são um mito e que os eventos extremos no RS são apenas fenômenos naturais sem qualquer ligação com o aquecimento global. Essa narrativa é divulgada amplamente pela produtora gaúcha Brasil Paralelo, que conta com um catálogo repleto de negacionismo e tem seu crescimento empresarial diretamente ligado ao processo de radicalização da direita no Brasil.

O conteúdo falseia a confiabilidade e ignora o consenso científico de que o aumento das temperaturas globais está diretamente relacionado ao aumento da frequência e da intensidade de eventos climáticos extremos. Tema que já tratamos em outro artigo.

A linha principal de desinformação pretende desacreditar o Estado e as ações dos governos estadual e federal no auxílio e na remediação da catástrofe, insinuando que teriam "aberto comportas" propositadamente para alagar cidades e destruir plantações do RS. Além disso, propaga-se a ideia de que as autoridades são incompetentes, corruptas, ou até mesmo mal-intencionadas, buscando minar a confiança pública nas instituições.

A narrativa geral promovida pela extrema direita é de que o "cidadão de bem" se autossalva, apoiado pelo setor privado, por empresários heroicos, em seus helicópteros e jet skis, enquanto todos os agentes públicos, incluindo militares, são vistos como incompetentes ou corruptos. Diversas imagens geradas por inteligência artificial têm circulado nas redes sociais, retratando cenários irreais, como helicópteros com logo de varejistas resgatando vítimas das enchentes. Segundo eles, é a liberdade individual por meio da propriedade privada e do livre mercado o que salvará a população em meio a tragédias — ideologia política conhecida como "anarcocapitalismo".

Nem tão surpreendentemente, para quem acompanha a decepção bolsonarista com os generais "melancia" (verde por fora e vermelhos-comunistas por dentro), os militares também têm sido alvo de ataques. As baterias bolsonaristas nas redes sociais passaram a mirar os antigos aliados e sugerem que as Forças Armadas não estão desempenhando seu papel adequadamente, fugindo das responsabilidades, evitando "entrar na lama", construindo "pontes que caem", enfim, são incapazes de agir de forma competente, o que contribui para um clima de desconfiança generalizada e reforça o ressentimento ou a revanche dos bolsonaristas em função do recuo dos militares que não bancaram o golpe que garantiria a continuidade do governo Bolsonaro. As Forças Armadas são questionadas agora por aqueles que queriam que elas interviessem na política brasileira e dessem um golpe de Estado.

Essa batalha incessante de informações falsas que ora vivenciamos nas redes sociais é um reflexo da mobilização extremista que visa manipular a percepção pública e explorar a tragédia para ganhos políticos. Uma tragédia de tal proporção é um evento propício para gerar uma sensação de pânico, urgência e ódio como forma de instigar a revolta e a necessidade de disseminar narrativas de combate. O ethos de guerra permanente da extrema direita foi reavivado e mostrou sua capacidade de produzir estragos.

Em tempos de crise, a desinformação não apenas compromete os esforços de resposta e recuperação, mas também agrava o sofrimento das comunidades afetadas, desviando a atenção dos fatos e das soluções reais necessárias. A regulação das plataformas e das big techs para reduzir essa avalanche de desinformação criminosa, que coloca vidas em risco, é, sem dúvida, importante, mas não suficiente.

Barrar o discurso de ódio, os delírios salvacionistas e as práticas destrutivas da extrema direita envolve muito mais que o controle das redes. É preciso uma ação direta e eficaz das políticas públicas, da prevenção à reconstrução, com a qualificação da educação em todos os níveis, a construção de redes efetivas de informação confiável, a promoção da justiça ambiental como justiça social, entre outros vetores. O fascismo que nasce da lama no RS se combate por todos os lados e por muitas ações combinadas, não podemos apostar em apenas uma lei miraculosa

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