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PL Antiaborto por Estupro

Rejeitar a barbárie para retomar o rumo

O futuro de nossas meninas em perigo com o PL 1904

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silhueta de menina chorando em meio à espinhos
SoU_Ciência - Meyrele Nascimento

Sobre o que falamos quando falamos de aborto? Sobre mães, gestantes, mulheres ou crianças? Sobre bebês, nascituros ou fetos? Sobre barganha política, demonstração de força, ou direito reprodutivo? Para Arthur Lira (PP-AL), o aborto, entre outras pautas, é uma questão de apoio de uma determinada bancada à sua reeleição para a presidência da Câmara dos Deputados. Para Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), é um teste para Lula, diante da bancada evangélica, e para sua governabilidade. Para as grandes empresas de tecnologia, as big techs, é só mais uma polêmica que rende cliques e verbas de anúncios mal-intencionados.

Para a maior parte da população, é fácil perder o horizonte de referência quando entram em pauta temas sensíveis. Estupro, aborto, abuso infantil, são palavras que nos dão arrepios e despertam revolta e indignação. E os agentes políticos sabem como mobilizar esses sentimentos a seu favor ou, pelo menos, tentam.

Em audiência temática no plenário do Senado, na última segunda-feira, o senador Girão (Novo-CE) contratou uma contadora de histórias para interpretar um feto em uma encenação do procedimento de assistolia fetal, tema da audiência. Para além do talento questionável e do mau gosto flagrante, a performance choca por sua incoerência com a realidade que visava representar. Apesar dos gritos da atriz, o procedimento em questão é totalmente indolor para o feto e o mais seguro para a mulher em casos de gestação avançada, como prevê a Organização Mundial de Saúde e como também esclarece a Rede Médica pelo Direito de Decidir.

Esse foi apenas mais um triste capítulo do descaso com o debate político sério e baseado em evidências de que tanto necessita a saúde pública. Tal trama tem sido rememorada pela extrema direita ao redor do mundo nos últimos anos, como assevera Débora Diniz, professora da Universidade de Brasília que é referência nas discussões sobre direitos reprodutivos no Brasil. Para ela, "O aborto vem sendo utilizado como um nicho de operação de populismo penal pela extrema direita".

É nesse contexto que surge o Projeto de Lei n. 1904, que pretende equiparar o aborto realizado após 22 semanas de gestação ao crime de homicídio simples, com pena entre 6 e 20 anos de prisão. Em sua justificativa, o PL monta uma narrativa emocionada que se desenrola desde 1940, época em que o atual Código Penal entrou em vigor, e contempla marcos históricos na conquista do acesso ao procedimento em unidades públicas de saúde. Para tal, personaliza seus personagens, cria heróis e vilões na figura de médicos, agentes públicos e representantes da sociedade civil envolvidos.

Em suas entrelinhas, o texto revela o descaso com a própria vida humana. Está tão preocupado em punir mulheres e crianças vítimas de abuso sexual que deixa intocado o Artigo 123 do mesmo código, que define pena de 2 a 6 anos de prisão para a mulher que durante ou logo após o parto cometer infanticídio. Ou seja, na prática, o procedimento de aborto em meninas é mais grave do que o homicídio do bebê pela mãe após o nascimento. Não faz sentido algum.

O PL 1904 pinta um cenário fantasioso no qual qualquer pessoa poderia chegar na Unidade de Pronto Atendimento (UPA) do bairro e fazer um aborto imediatamente, mas a realidade, infelizmente, é muito mais alarmante. Mesmo em São Paulo, estado de referência nacional, metade dos hospitais habilitados a realizar o procedimento apresentaram problemas nos atendimentos em 2023, de acordo com Núcleo Especializado de Promoção e Defesa dos Direitos das Mulheres, da Defensoria Pública de São Paulo (Nudem/SP). Dificuldade de acesso à informação, falta de protocolos padronizados, criminalização e constrangimento emocional são a realidade diária de vítimas e familiares que têm a coragem de procurar ajuda no Sistema Único de Saúde.

Além de questões sociais, psicológicas e humanitárias das meninas vítimas de violência sexual, o PL 1904 fere leis, tendo a OAB definido a sua inscontitucionalidade recentemente, não podemos nos esquecer do Estatuto da Criança e do Adolescente que, no Artigo 4º, preconiza que é "dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária […] com primazia de receber proteção e socorro em quaisquer circunstâncias".

Há também as inúmeras questões sociais e econômicas que possibilitam o acesso à Educação e à Saúde, pois sabemos que aquelas meninas mais vulneráveis serão as mais prejudicadas e sofrerão consequências para toda a vida. Como finaliza o texto da OAB: "A criminalização pretendida configura gravíssima violação aos direitos humanos de mulheres e meninas duramente conquistados ao longo da história, atentando flagrantemente contra valores do estado democrático de direito e violando preceitos preconizados pela Constituição da República de 1988 e pelos Tratados e Convenções internacionais de Direitos Humanos ratificados pelo Estado brasileiro."

A sociedade reagiu, as mulheres reagiram e cerca de 88% da população mostrou sua desaprovação ao PL 1904. Após uma semana de manifestações e mobilização social, foi anunciado o adiamento da votação. Esse resultado mostra que o debate público precisa continuar e resistir ao pânico moral que venha a acometer com medidas como esse projeto de lei. A Educação Pública, que é um direito de nossas crianças e meninas, é chave fundamental para o enfrentamento de situações que podem nos levar à barbárie.

A questão da violência contra meninas, especialmente a violência sexual, precisa ser enfrentada à luz da ciência comprometida com a sociedade. Que este seja um momento de ressignificação a partir dos fatos ocorridos e das ameaças desnudas. Façamos deste momento um ponto para o sofrido mas relevante caminho da consciência e da transformação.

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