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São Paulo

Cortar orçamento da ciência e vender picolé

Governo do Estado e pastor extremista atacam universidades e pesquisas e mostram sua visão de país

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picolés pretos sobre fundo creme
SoU_Ciência - Meyrele Nascimento

Os ataques à ciência sempre estiveram presentes na nossa história. Foram, quase sempre, perpetrados pelas forças conservadoras ou reacionárias que não aceitam que o conhecimento humano formule novas questões e explicações sobre a vida e a existência. Na última semana, presenciamos dois ataques da extrema direita brasileira às universidades e à pesquisa científica. De um lado, o pastor da Igreja da Lagoinha, de outro, o governo do estado, que, entre outras coisas, comanda uma política de extermínio em São Paulo.

No dia 20 de junho, o pastor André Valadão, da Igreja Batista da Lagoinha, já conhecido por sua campanha anterior de ódio à comunidade LGBTQIA+, iniciou um ataque às universidades brasileiras. "Se a faculdade vai acabar com a vida do teu filho, não manda ele para a faculdade. Não manda! Vá vender picolé na garagem! ‘Ah, mas eu não criei meu filho para isso’. Criou para quê? Para ele ir para o inferno?", disse o pastor a seus fiéis.

Menos de uma semana depois, no dia 26 de junho, a Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo aprovou o projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias para 2025 proposto pelo governo do estado. O projeto, que agora segue para a sanção do governador Tarcísio de Freitas (Republicanos), traz um corte de 30% no orçamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), uma perda de R$ 600 milhões para a agência. A aprovação do projeto não representa um ataque apenas ao estado de São Paulo, mas à ciência nacional: as universidades públicas paulistas são responsáveis por 40% da ciência produzida no Brasil e fazem parte de um rico ecossistema de colaboração com instituições públicas de todo o país, além de terem relações científicas sólidas e significativas com renomadas instituições internacionais.

Nos últimos anos, principalmente durante o governo Bolsonaro, os brasileiros viram o orçamento da pesquisa cair R$ 117 bilhões, acompanhado de quedas nos investimentos em diversas outras áreas das universidades, precarizando seu funcionamento. Essas quedas orçamentárias foram acompanhadas de inúmeras campanhas para desqualificar o trabalho das universidades públicas e a sua eficiência, a despeito dos dados que comprovam que o país continua a ser um importante produtor de ciência e tecnologia, em quantidade e qualidade, tanto nacional quanto internacional.

Coincidentemente (ou não), também estamos vendo cair, no Brasil, ano a ano, o interesse dos jovens em ingressar na Educação Superior. O número de inscrições para o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) vem diminuindo desde 2016. Em 2024, apresentou o primeiro aumento em relação ao ano anterior, subindo para cerca de 5 milhões de inscrições, de acordo com dados preliminares do Ministério da Educação. No entanto, ainda está muito abaixo dos 8,6 milhões registrados em 2016.

Esses dados devem ser observados com atenção, principalmente porque as universidades públicas têm ampliado o acesso aos seus cursos de graduação e de pós-graduação a uma população mais diversa. Na última década, o Brasil viu um processo intenso de mudança no perfil dos estudantes dessas universidades, responsáveis por 90% da produção de pesquisa do país. O Painel de Cotas do SoU_Ciência demonstra, em números, essa transformação: em 2013, apenas 20,6% dos concluintes dos cursos de graduação das universidades federais vinham de famílias com até 4,5 salários mínimos. Em 2019, esse número cresceu para 38,9%. Além disso, em 2013, negros e negras (pretos/as + pardos/as) eram 24,1% dos ingressantes e, em 2019, esse percentual mais do que dobrou, indo para a casa dos 48,5%.

Em um país no qual a educação foi historicamente usada como símbolo de status, separando as elites das demais classes cujos direitos de acesso foram negados, mudanças como essas incomodam e provocam reações violentas. A pesquisa de percepção de jovens brasileiros sobre ciência e tecnologia, de 2024, realizada pelo Instituto Nacional de Comunicação Pública da Ciência e Tecnologia (INCT-CPCT) da Fiocruz, mostra que, apesar da tentativa de desmontar o Ensino Médio, a maior parte dos jovens brasileiros continua interessada pela ciência. Esse interesse precisa ser cultivado e estimulado. No entanto, o extremismo propõe outra coisa: o corte de bolsas de pesquisa e vender picolé na garagem de casa.

Um lugar que ataca a ciência e a produção de conhecimentos está enviando um claro recado, não apenas para a sua juventude e para os seus pesquisadores, mas para o mundo. Abrir mão da capacidade de produzir ciência, tecnologia, e consequentemente inovação, é abrir mão de sua soberania, em uma sociedade na qual esse tipo de conhecimento é a chave para enfrentar as maiores crises que temos em curso, como as mudanças climáticas, as pandemias, as guerras, a pobreza, a insegurança alimentar e a desinformação, entre outras.

Não é apenas nas grandes questões do mundo que a ciência está presente: há de se observar a ciência presente no dia a dia, inclusive na produção do tal picolé. O estudante universitário poderá aprender sua composição química, a formação de cristais de gelo, a importância da engenharia de alimentos, da nutrição, da biotecnologia, além das estratégias de design, ciência de materiais, embalagens, marketing, distribuição, logística, vendas, ciclo de vida do produto... Há muito mais conhecimento científico por trás do picolé do que imagina o pastor em sua vã sabedoria.

A educação, a ciência e a tecnologia não são em si soluções milagrosas para os graves problemas do mundo. Mas, sem elas, não teremos condições de compreender nossos problemas, reconhecer nossos potenciais, fortalecer nossa competitividade e abrir novas perspectivas de mudanças em direção a uma sociedade justa e inclusiva.

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