Sylvia Colombo

Latinidades

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Sylvia Colombo
Descrição de chapéu América Latina

2021, o ano em que a América Latina pediu mudanças

Eleições, protestos e disputas acirradas exigiram novas relações com o poder

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Buenos Aires

Mais do que alimentar debates pouco frutíferos sobre se há ondas de esquerda ou de direita varrendo a América Latina _recurso midiático generalizante que ignora nuances e particularidades de cada caso_, uma coisa ficou clara em grande parte da região neste 2021. A população pediu mudanças a seus governantes sobre o modo como funcionam seus países, em geral relacionadas a empregos, acesso a um bom sistema de saúde, de educação e de aposentadorias.

Alguns desses processos se deram por meio de protestos e fricções sociais, outros por meio de eleições. O fato é que uma nova relação entre sociedade e poder tem sido uma demanda comum na região, assim como a necessidade urgente de uma crítica ao sistema de representatividade democrática como a conhecíamos até então. A pandemia do coronavírus acentuou isso. E o resultado foi uma série de mudanças de rumo em vários países.

Apoiadora de Xiomara Castro, em Honduras, às vésperas da eleição presidencial, usa uma faixa que diz "vão embora", em referência a políticos que já estavam no poder
Apoiadora de Xiomara Castro, em Honduras, às vésperas da eleição presidencial - Luis Acosta (France Presse)

Um dos primeiros a manifestar isso foi o Equador, em eleições que ocorreram entre fevereiro e abril. Depois de um período conturbado de deterioração econômica, protestos dos indígenas e uma péssima gestão do início da pandemia, que fez de Guayaquil um dos símbolos mais trágicos da chegada do coronavírus à região, os equatorianos decidiram mudar o rumo do país.

Deixaram de apoiar o socialismo do século 21 implementado por Rafael Correa (2007-2017) e depois desmantelado por seu sucessor e ex-apadrinhado, Lenín Moreno, para apostar diretamente numa opção conservadora nos costumes e liberal na economia, o empresário Guillermo Lasso. Num primeiro momento, as coisas andaram bem, com o país logo se posicionando entre os que mais haviam vacinado sua população na região. Logo, porém, uma crise de governabilidade e rebeliões nas prisões jogaram Lasso contra as cordas. E, no momento, sua gestão negocia e luta por sobreviver politicamente. Os ânimos voltaram a alterar-se e podem ganhar as ruas em 2022.

No Peru, uma insatisfação generalizada com a corrupção, que levou vários ex-presidentes a serem presos ou processados, combinada com o desmantelamento dos partidos promovidos pelo período fujimorista, além da falta de redistribuição dos benefícios trazidos pelo aumento do PIB durante o "boom das commodities" levaram os peruanos a tornarem-se profundamente céticos com relação à classe política. Na eleição presidencial de abril e junho de 2021, uma grande quantidade não quis votar, e os que o fizeram deram a vantagem, por uma mínima quantidade de votos, a um "outsider" da política tradicional.

Representante de uma esquerda rural, arcaica, com vínculos com a guerra interna que fez o Peru sangrar nos anos 1970, Pedro Castillo chegou ao poder apoiado num partido fraco, radical e que não demorou muito para rachar.

Suas bandeiras de campanha, que passam por projetos necessários à população humilde do país, como a reforma agrária, o aumento de impostos aos mais ricos para beneficiar os mais pobres e a extensão dos programas educacionais, têm hoje muita dificuldade de serem aprovadas por um Congresso em guerra contra o mandatário. Desde julho, quando chegou ao poder, até hoje, Castillo mal conseguiu formar um ministério e sua manutenção no poder está por um fio.

A oposição está determinada a preparar a cama para um afastamento do mandatário antes mesmo de que complete um ano de mandato. Ele já se livrou de uma moção de vacância, mas outras acusações estão sendo preparadas para que logo ele tenha de enfrentar, novamente, mais uma desgastante e talvez, determinante, sessão de afastamento.

Mulher protesta contra corte de gastos em educação no Equador, durante o governo de Guillermo Lasso
Mulher protesta contra corte de gastos em educação no Equador, durante o governo de Guillermo Lasso - Rodrigo Buendia/France Presse

A Argentina viveu em 2021 o racha da aliança governista, a Frente de Todos, agora dividida entre os "albertistas", os poucos apoiadores de Alberto Fernández na cúpula do governo, e os "cristinistas", os muitos de Cristina Kirchner. Agora, e como sempre foi na história argentina recente, o grande inimigo do peronismo é o próprio peronismo. Fernández conseguiu desiludir até mesmo no papel de fantoche que lhe foi concedido por Cristina Kirchner, sua vice e madrinha toda-poderosa.

Após um início animador, com uma boa iniciativa de negociar com o Fundo Monetário Internacional a imensa dívida que a Argentina possui (US$ 44 bilhões) e de gerenciar bem as restrições iniciais da pandemia, Fernández meteu os pés pelas mãos ao apostar quase todas as fichas da vacinação em um só imunizante, a vacina russa Sputnik, que contou com falhas e atrasos da entrega. Depois, ao permitir que os amigos do poder furassem a fila e ao permitir que sua companheira realizasse uma festa, fotografada e filmada em plena rígida quarentena.

Os vexames acima associados a uma inflação de mais de 50% ao ano, uma desvalorização abissal do peso, o aumento das tarifas de serviços básicos e o isolamento do país com relação aos investidores estrangeiros completam o pacote de insatisfação dos argentinos com o governo. E a resposta veio na eleição legislativa de novembro. Na votação, saiu vitoriosa uma oposição também medíocre, com direito à abertura de espaço para um ainda diminuto projeto de ultradireita, os chamados libertários, liderados pelo economista fanfarrão Javier Milei, agora com uma vaga de deputado no Congresso, de onde pode passar a gritar os impropérios que antes ocupavam o horário nobre da TV.

Em Honduras, a vitória da esquerdista Xiomara Castro foi tão contundente que não houve espaço para uma nova fraude do partido nacional, o que não significará, de modo nenhum, que ela não terá dificuldades em enfrentar a máquina clientelista e corrupta aparelhada por Juan Orlando Hernández, nem que não tenha de fazer concessões ao mesmo "establishment" que, em 2009, realizou um golpe para depor seu marido, Manuel Zelaya.

Na eleição mais significativa do ano, o Chile pôs fim a um modo de fazer política que vinha sendo o predominante desde a redemocratização do país. Um modelo que havia garantido um crescimento sustentado do PIB, mas que tinha solenemente ignorado o bem-estar de seus cidadãos, justamente nas áreas de educação, saúde e aposentadorias. Estudantes saíam das universidades públicas endividados por décadas, idosos não tinham dinheiro para comprar seus medicamentos com o sistema de pensões privadas. Nem a água era grátis no Chile do "modelo" tão elogiado mundo afora.

Para quem sempre achou que o país era uma espécie de Suíça latino-americana, os movimentos de 2019 e a eleição de Gabriel Boric mostraram que a imagem falsa havia sido comprada sem questionamentos por boa parte da opinião pública internacional. Há muito tempo as coisas não andavam bem no Chile. Se agora podem melhorar, não sabemos, mas os problemas seculares estão, pelo menos, expostos e sendo debatidos.

Vale lembrar que Cuba também pediu e segue pedindo mudanças, mas que seu grito vem sendo abafado por uma cruel repressão. Já a Nicarágua está ainda mais amordaçada. Seu último grito se ouviu em 2018 e foi duramente reprimido. Enquanto isso, a Venezuela segue pedindo mudança, mas se frustra com seus líderes opositores e agora precisa repensar as estratégias de luta contra a ditadura.

Integrante de comunidade indígena durante os protestos que marcaram a greve geral em Bogotá, ao fundo, uma labareda de fogo
Integrante de comunidade indígena durante os protestos que marcaram a greve geral em Bogotá - Jhon Paz/Xinhua

A Colômbia também demonstrou de modo explícito as contradições de sua sociedade e seu cansaço com as falsas promessas do projeto do direitista Iván Duque. No país, os protestos duraram meses e custaram dezenas de vidas. Agora, em 2022, será o momento de decidir nas urnas por onde encaminhar as demandas.

Em 2022, também o Brasil optará por uma mudança ou a continuidade de sua difícil situação.

Se o ano de 2021 foi o ano em que a América Latina pediu mudanças. O de 2022 será o de enfrentar as consequências das que foram alcançadas e de seguir lutando pelas que faltam. O cenário para todos será difícil, de uma difícil situação econômica pós-impacto da pandemia e o de sua própria continuidade com suas novas variantes e mais incertezas sanitárias e sociais.

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