Sylvia Colombo

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"Argentina, 1985" mostra como país levou ao banco dos réus a cúpula do regime militar

Com Ricardo Darín, filme já foi visto por meio milhão de pessoas em duas semanas

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Buenos Aires

O momento em que o promotor Julio Strassera (Ricardo Darín) lê a acusação contra os líderes do regime militar argentino (1976-1983), pedindo-lhes penas de prisão e concluindo com um emotivo: "Nunca mais", leva os argentinos a aplaudirem a cena de pé, nas salas de cinema portenhas. Mesmo em cinemas de bairros nos quais até hoje vivem familiares desses repressores, assim como de vítimas, como o da sala a que fui, a emoção toma conta geral do auditório. É como se, ainda que por um instante apenas, existisse um consenso nesta sociedade tão dividida, o de que esse capítulo da história nacional foi realmente tenebroso.

"Argentina, 1985" tem um título pretensioso, supõe-se que é o de mostrar o Julgamento das Juntas Militares, responsáveis pela morte, tortura ou desaparecimento de mais de 20 mil pessoas, como uma espécie de Tribunal de Nuremberg. Talvez a comparação não seja exagerada. Nenhum país latino-americano, afinal, julgou e condenou os repressores de suas ditaduras tão rápido e tão duramente como a Argentina. O Julgamento às Juntas começou nem bem o primeiro presidente eleito de modo democrático, Raúl Alfonsín, havia se sentado na cadeira presidencial, e enquanto ainda escutava rumores às suas costas de que os militares poderiam voltar a sublevar-se e tirar dele o poder a qualquer deslize.

Ricardo Darín e Peter Lanzani no lançamento do filme, em Buenos Aires
Ricardo Darín e Peter Lanzani no lançamento do filme, em Buenos Aires - Alejandro Pagni/France Presse

O filme estreou nas salas de cinema da Argentina antes de ser disponibilizado na plataforma da Amazon Prime, no próximo dia 21. Com duas semanas em cartaz, já foi visto por meio milhão de pessoas, e as salas continuam cheias. Para conseguir um lugar, é preciso paciência e, como no meu caso, conformar-se com uma das últimas cadeiras que sobram para vender, com o nariz grudado na tela. Mas vale à pena, justo quando se pensava que o streaming nos tinha roubado a sensação de suspense e ansiedade de ver um filme tão esperado em primeira mão, e na tela grande. "Argentina, 1985" é o escolhido pelo país para disputar o Oscar de melhor filme estrangeiro _categoria na qual o país já tem duas estatuetas.

O filme conta a história do promotor Julio César Strassera (1933-2015), até então um funcionário apagado do poder judicial argentino, que leva uma vida de classe média num apartamento tão pequeno que pode ver o que os vizinhos estão assistindo na TV todas as noite. Naqueles tempos, na Argentina, o recém-eleito Alfonsín queria armar o tribunal para julgar os militares repressores, algo que gerava enormes debates no horário nobre. A voz dos militares era ouvida não diretamente, mas por meio de ministros ou de jornalistas de TV que se mostravam contra o tal julgamento. Desde cedo no filme, eles repetem o mantra enganoso que seria sua defesa também no tribunal: "que os militares haviam sido patriotas, que haviam controlado a guerrilha comunista, que não tinha havido plano sistemático de abusos de direitos humanos, mas sim alguns 'excessos'."

Strassera e sua família concordam com a ideia do julgamento. Mas o promotor, que carrega a culpa de não ter atuado na resistência à ditadura, também tem medo. Sua mulher e filhos o empurram a aceitar levar adiante a causa, designada a ele, mas sua cabeça está cheia de dúvidas. Dúvidas de que será de fato um julgamento sério, de que será ouvido, de que poderá reunir as provas para a acusação sem a ajuda da polícia, que não queria colaborar em julgar os militares, dúvida de que poderiam tentar "melar" o julgamento, dúvida de que ele ou sua família poderiam pagar um preço _de fato, o telefone de sua casa não para de tocar com chamadas de ameaça até que alguém consegue entrar no apartamento e deixar em sua mesa uma carta datilografada, sentenciando-o à morte com um bala em cima do envelope.

Ainda que hesitante e assustado, o promotor vê que não tem outra alternativa do que ser parte da história, afinal, é mais forte a sensação de que isso é o moralmente correto. Se cerca de um grupo de advogados muito jovens, comandados por Luis Moreno Ocampo (Peter Lanzani), que, depois do Julgamento das Juntas seria promotor da Corte Penal Internacional. Strassera e sua jovem equipe passam a trabalhar com os documentos reunidos pela Conadep (Comissão Nacional Sobre a Desaparição de Pessoas).

Também criada por Alfonsín, e comandada pelo escritor Ernesto Sábato, a Conadep reuniu milhares de depoimentos de vítimas e parentes de vítimas e coletou material fornecido por ONGs de direitos humanos. A equipe de Strassera coloca as mãos na massa e o escritório do promotor de repente se enche de pessoas contando as coisas mais escabrosas sobre suas torturas, seus partos em cativeiro, seus amigos que nunca mais viram. Alguns desses casos são levados às audiências.

Embora naquela época já fosse sabido que o regime militar havia cometido delitos de lesa humanidade, poucos tinham ideia da escala e da covardia. O Julgamento das Juntas não foi transmitido pela TV ao vivo, mas sim pela rádio. Mesmo assim, o relato das vítimas teve longo alcance, a ponto de a mãe de Moreno Ocampo, que ia à missa com o general Videla e o considerava um "bom homem", se quebra e muda de lado ao ouvir o relato de uma mulher que deu à luz dentro do carro de repressores e que estes não a ajudaram em nada, ao contrário, a puseram a fazer faxina depois do parto.

O Julgamento das Juntas foi a primeira vez em que toda a sociedade argentina, ainda que muitos se recusassem a ver, soube das atrocidades cometidas pelos militares. Já seria um momento histórico apenas por isso. Mas o foi também por enfileirar todos os altos comandantes das Forças Armadas no banco dos réus de uma sala de audiência em que se respirava medo, tensão e esperança. Ali também estavam Mães e Avós da Praça de Maio e parentes de vítimas. Quando Strassera faz a acusação, o local explode como se fosse a arquibancada de um estádio, ao qual Videla apenas deita um olhar irônico com ares de psicopata.

Ao escolher o recorte da história, algumas coisas, porém, ficam de fora. Como o mesmo tratamento que receberam, num outro tribunal, vários líderes da guerrilha que cometeram atrocidades, como Mario Firmenich, fundador da guerrilha Montoneros e responsável pelo sequestro e morte do ex-ditador Aramburu. Também há uma escolha clara de mostrar como vivia aquela sociedade recém-saída da ditadura, com uma caracterização de época e trilha sonora fantásticas, mas mostra-se pouco os bastidores da política, onde Alfonsín empreendia enormes batalhas para manter o sistema democrático funcionando.

Também se faz a escolha de não mostrar os tropeços que o processo aberto pelo Julgamento teve nos anos posteriores, quando o mesmo Alfonsín, pressionado, teve de voltar atrás e permitir leis que garantiam impunidade a alguns setores dos militares, as de Obediência Devida e Punto Final, e que depois foram concluídas com os indultos dados por Carlos Menem.

Segundo a leitura do filme, o Julgamento às Juntas só ganha a importância devida à luz da história, quando nos anos 2000, durante o governo de Néstor Kirchner, caem todos os indultos e voltam a julgar-se os crimes do Estado. Segundo essa interpretação, o julgamento acaba sendo rebaixado a uma espécie de precedente dos julgamentos realizados nos últimos anos e que, de fato, têm hoje a milhares de repressores detrás das grades. Essa leitura, que é uma leitura do kirchnerismo, sempre gerou fricção entre Strassera e esse grupo político.

Mostrado de modo isolado, sem que se saiba o que veio depois, porém, o Julgamento das Juntas foi muito mais que isso. Não é uma história de heroísmo, mas de enfrentamento corajoso e algo romântico (por parte dos jovens que acompanharam Strassera). É a história de uma sociedade assustada, ainda ignorante do pesadelo que havia vivido, e que desperta graças à iniciativa de um presidente de estabelecer um tribunal para os crimes do regime. O medo de que algo terrível possa voltar a acontecer é palpável no ar, se sente no olhar de um Darín magistral e na respiração ofegante de Lanzani. Embora a escala dos crimes seja outra, não é exagero chamar o Julgamento das Juntas de Nuremberg latino-americano.

Nenhum outro país da região fez nada parecido com seus ex-ditadores e ex-repressores. E, nesta, os argentinos estão mais do que certos ao levantar-se a aplaudir com orgulho o momento em que Strassera conclui seu pedido de condenação com as palavras: "Nunca Mais".

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