Feminismo atual é herança das Avós da Praça de Maio, diz presidente do grupo

Aos 88 anos, Estela de Carlotto critica governo Macri e conta como encontrou o próprio neto

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Estela de Carlotto (dir), presidente das Avós da Praça de Maio, ao lado do neto, Ignacio, achado após 36 anos de buscas 
Estela de Carlotto (dir), presidente das Avós da Praça de Maio, ao lado do neto, Ignacio, achado após 36 anos de buscas  - Martín Zabala - 8.ago.14/Xinhua
Buenos Aires

No momento em que as Avós da Praça de Maio se preparam para fazer uma renovação, com jovens e netos ocupando lugares de importância no funcionamento da entidade, a presidente da instituição afirma que o movimento feminista atual se inspira no grupo que lutou contra a ditadura militar argentina (1976-1983).

“Não é à toa que o movimento feminista argentino elegeu os lenços como símbolo. Nós usamos lenços brancos para sair às ruas para buscar nossos filhos e netos. As meninas de hoje têm nossa luta como herança”, diz Estela de Carlotto, 88, em entrevista à Folha na sede da entidade, em Buenos Aires.

“Na Argentina o papel da mulher na história foi mais forte, no nosso caso, porque a repressão foi muito cruel, e porque as que somos mães e demos à luz, quando nos tiraram os filhos e netos, o fizeram com muitas. Foi nossa união que nos deu uma força tremenda para lutar. As garotas de hoje se inspiram nisso”.

Atualmente, as jovens feministas lutam pelo fim das agressões às mulheres, pela legalização do aborto e pela igualdade salarial, entre outras coisas, mas usam, como as Mães e as Avós da Praça de Maio, lenços, só que verdes, na cabeça, no pescoço ou amarradas às mochilas.

“Passados 41 anos de nossa luta, creio que fica o exemplo. Quando me devolveram o corpo de minha filha, eu ia levar flores à sepultura, e sempre repetia a promessa: vou buscar Justiça para você e para seus colegas, e vou buscar o seu filho, nunca desistirei.”

Estela de Carlotto era uma mulher de classe média, professora, “sem nenhum interesse pela política, só ia votar quando tinha eleições”, até que sua vida mudou para sempre, numa tarde de 1977.

Foi quando recebeu a notícia de que uma de suas filhas, Laura, militante estudantil, havia sido sequestrada pela ditadura quando estava grávida. Tempos depois, recebeu o corpo da filha e pôde enterrá-la, mas uma pergunta ficou no ar: “Onde estava o bebê?”.

Por uma sobrevivente que havia estado no mesmo centro clandestino da filha, soube que ele tinha nascido, que era um menino, e que Laura o chamou de Guido, como o pai.

“Neste momento, havia outras avós fazendo-se a mesma pergunta. O essencial foi que nos juntamos, e começamos a buscar, sem método, buscando as vias que fossem, quem pudesse nos ouvir. Eu, inocentemente, até procurei um bispo e um militar conhecidos meus, sem saber que eles eram quem estavam desaparecendo com as pessoas.”

Hoje a instituição conta com 90 funcionários, que administram distintas áreas, há psicólogos para ajudar as famílias, advogados que levam denúncias à Justiça, geneticistas que cuidam do banco de dados com as informações genéticas de pessoas que buscam seus familiares, e as poucas avós que ainda restam.

“Estamos nos preparando para mudar, mas essa casa vai seguir funcionando. Mesmo quando morre uma avó, continuamos a buscar o seu neto.”

Carlotto, porém, reclama da atual posição do governo de Mauricio Macri com relação aos organismos de direitos humanos.

O aporte do Estado para o funcionamento das Avós está na lei. “Mas eles preferiam que nós não existíssemos. Atrasam, pagam parcelado, demoram a retornar pedidos. Até que temos que ligar dizendo que vamos fechar a instituição e chamar as pessoas às ruas e armar um escândalo internacional. Aí voltam”, conta.

Recentemente, o Estado deixou de repassar o aporte à Equipe de Antropologia Forense, organização especializada em identificar DNAs de ossadas. Após protestos,  retomou os pagamentos.

As Avós estimam que ainda há cerca de 300 netos por encontrar. Estes teriam nascido em cativeiro, sendo filhos de opositores do regime. Como no caso da filha de Carlotto, algumas grávidas presas  eram preservadas até darem à luz, e depois eram mortas.

Carlotto buscou o próprio neto por 36 anos. “Mas eu nunca senti que buscava apenas ele, buscava a todos. E no dia seguinte de tê-lo encontrado, eu vim trabalhar, porque ainda faltam muitos por achar.”

Ignacio de Carlotto, o filho de Laura, tinha sido entregue a um casal de camponeses de Olavarría, e apenas soube ser adotado em 2015. Então buscou a sede das Avós. Quem lhe deu a notícia, meses depois, que o exame de sangue apontara ser ele filho de desaparecidos foi outra filha de Estela, Claudia.

“Ela então disse, ‘tem algo mais, sabe de quem você é neto? Da presidente das Avós, Estela, e eu sou sua tia’.”

Os olhos de Carlotto ficam vermelhos quando conta essa história, que já repetiu tantas vezes. Disse que com Ignacio atuou exatamente como faz com os outros netos. “Nós não os sequestramos de volta. Nós dizemos aos netos quem eles são, e eles têm a liberdade de fazer o que quiser com sua identidade.”

Tanto que há uns que chegam a trocar de nome, outros trocam parcialmente —Ignacio não quis adotar “Guido”, mas sim o sobrenome “Carlotto”—, há os que chegam a trabalhar nas Avós, e há os que não querem se meter em política.

“No meu caso, meu neto quer ficar no campo, quer fazer sua música, cuidar da família, mas nos vemos muito, conversamos muito, estamos nos conhecendo.”

Há casos mais conflituosos, em que o neto não quer fazer o teste de DNA mesmo após uma denúncia judicial. Aí as Avós acionam a Justiça. Carlotto conta que já chegaram a fazer testes contra a vontade dos netos, usando uma peça de roupa ou algum objeto.

“São casos mais raros. No geral, essa é uma casa de alegria, de reencontros. Ainda choramos pelos que não estão, e também nos dói muito quando uma avó morre sem ter encontrado seu neto. Mas nós o seguimos buscando, com o mesmo afinco. E é uma alegria quando encontramos e podemos dizer-lhes que eles foram procurados sem descanso.”

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