'Devo às Avós saber quem sou', diz homem que nasceu em prisão durante a ditadura argentina

Leonardo Fossati nunca conheceu a mãe e só descobriu sua história depois de adulto

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O argentino Leonardo Fossati no local em que sua mãe foi sequestrada, em La Plata, durante a ditadura argentina - Xavier Martín/Folhapress
 
La Plata (Argentina)

Leonardo Fossati, 41, gira a chave que abre o cadeado do calabouço da Delegacia 5 da cidade de La Plata. O local já não funciona como sede de operações policiais, pois está sendo restaurado para virar museu. Durante a ditadura (1976-1983), foi um dos centros de detenção clandestina dos opositores do regime na região.

A trágica ironia é que esse homem de barba, pai de três filhos, fala pausada e tranquila nasceu aqui, na cozinha desta prisão que está sendo reformada para visitas públicas.

Fossati entra na cozinha, ainda com seus azulejos originais no chão e nas paredes, e mostra um local: “Aqui havia uma mesa, onde amarraram minha mãe pelos pés e pelas mãos. Soube que houve muito barulho, porque uma das outras presas sobreviveu e nos contou. Minha mãe gritou muito, quem a ajudou para que eu nascesse foi a parteira que depois me entregou a meus pais de criação”, conta ele.

Seus pais biológicos, Inés Ortega e Leonardo Rubén Fossati, ficaram presos ali por seis meses em 1977. Inés tinha 17 anos quando Leonardo nasceu. Depois, nunca mais se soube do casal. “Eu os estou buscando até hoje, mas não há rastros de onde podem ter sido levados”, diz.

Fossati cresceu com a família adotiva a poucas quadras desse posto policial. Fala dos pais de criação com carinho e crê que foi adotado de boa-fé, ou seja, que eles acreditaram que Leonardo era um bebê abandonado pela mãe, e não um filho de presos políticos. 

Deram a ele o nome de Carlos. “As dúvidas sobre minha identidade sempre existiram. Primeiro, porque via que meus pais eram muito mais velhos que os dos meus colegas de escola. Depois, isso ficou mais forte quando eu mesmo fui pai, aos 19 anos, e senti uma urgência em investigar de onde tinha vindo.”

Quando perguntou a seus pais de criação, eles admitiram que o tinham adotado. Mesmo assim, a relação com um sequestro político parecia distante para todos. “Eles não eram o protótipo de família escolhida pelos militares para entregar bebês. Eram simpatizantes da União Cívica Radical (UCR), ou seja, não eram conservadores, comemoraram a volta da democracia.”

Foi então que uma amiga de um grupo de teatro que ele frequentava, vendo o colega angustiado, disse: “Por que você não procura as Avós [da Praça de Maio]?”. E lá foi ele, em 2005. “Fiz o teste, fiquei um pouco ansioso nos primeiros meses, mas demorou tanto para sair o resultado que quase esqueci”, lembra. 

“Um dia, veio um oficial à minha casa notificar que eu deveria ir à delegacia, e pensei que tinha alguma coisa errada com a documentação de uma moto que tinha comprado, nem imaginei que pudesse ser isso”, conta, rindo. 

“Depois vieram [a líder da entidade] Estela de Carlotto, me entregaram documentos, falei com meus pais adotivos. Foi um dia imenso. Não sabia o que fazer com tanta informação nova. Estava confuso. Liguei para um amigo dizendo que precisava tomar umas.”

Ele vai contando a história enquanto caminhamos pelo calabouço, mal iluminado e em péssimo estado. “Demorei muito tempo até querer entrar aqui. Hoje sinto que tenho uma dívida com esse lugar, com essa história.”

Fossati é hoje o responsável pela sede das Avós em La Plata e, portanto, quem comanda a transformação do temido centro clandestino em museu. É por isso que ele tem a chave do cadeado do lugar em que seus pais ficaram encerrados.

As celas pequenas não têm luz. O ar parece irrespirável, abafado. “Como estamos no pátio da delegacia, quem entrava ali para prestar uma queixa ou fazer um trâmite não imaginava que tinha tanta gente encerrada aqui atrás, da rua não dava pra ver nada”, afirma.

Ele conta que retomar contatos e conhecer toda a sua verdadeira família é um processo que tem gratificações, mas não é fácil. 

“Os pais do meu pai adoeceram depois que ele desapareceu. Eles não suportaram a dor, e as doenças os levaram à morte”, explica. “A irmã do meu pai também tinha se convencido de que eu tinha morrido com eles, e, de repente eu apareço, trago recordações. Sinto que não é fácil, e todos precisam de tempo para ajustar esses afetos.” 

Por outro lado, seus avós maternos estavam vivos quando ele reapareceu. “É uma emoção tremenda. E tudo graças ao trabalho das Avós. Devo a elas saber quem de fato eu sou”, diz. 

“Ainda há muita gente aí que precisa de ajuda para encontrar sua identidade. Há muito o que se revelar sobre o que ocorreu naqueles anos.” 

 

Esta reportagem faz parte de uma série sobre pessoas e projetos que defendem os direitos humanos pelo mundo, nos 70 anos da promulgação da Declaração Universal dos Direitos Humanos. 

A reportagem foi produzida com ajuda de custo da ONG Conectas.

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