Thaís Nicoleti

Thaís Nicoleti - Thaís Nicoleti
Thaís Nicoleti

Um raciocínio torto

Seria a cultura brasileira em repositório de vícios?

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

O escritor Carlos Drummond de Andrade - Carlos Freire

Antonio Prata escreveu um artigo um tanto provocativo no último domingo, simulando uma aula de literatura em que uma professora tentava, em vão, analisar o célebre "Poema de Sete Faces", de Carlos Drummond de Andrade, com os alunos. Estes empacaram já no verso inicial, quando o poeta menciona um certo "anjo torto" que lhe teria vaticinado o destino de "ser gauche na vida".

Na crônica de Prata, um aluno questiona o uso da imagem do "anjo", influência clara da cultura ocidental cristã do colonizador opressor, enquanto outro se preocupa com o adjetivo "torto", que lhe parece preconceituoso ou de viés "capacitista". Um ainda mais finório, que sabe que "gauche" em francês quer dizer "esquerda", indigna-se com a associação entre "ser de esquerda" e "ser torto" – e por aí vai.

Ao que tudo indica, a professora, oriunda do remoto século 20, nem imaginaria levantar essas questões ao analisar o texto já consagrado. Aparentemente, Prata escolheu Drummond por ser este um dos poetas mais aclamados pela crítica e pelos leitores, um dos grandes do nosso cânone, o que nos leva a pensar que qualquer outro escritor da nossa tradição que fosse submetido ao crivo dessa sala de aula sairia igualmente chamuscado, se não destruído.

Afinal, o cronista está do lado da professora ou do lado dos alunos? Essa foi a questão subliminar que dividiu os leitores dispostos a comentar o texto. Alguns disseram que nunca saberemos a resposta e que é esse um dos pontos altos do texto de Prata, o que parece excesso de benevolência.

A considerar válidos os caminhos de análise da turma de alunos, Drummond sai desvestido de todo o seu glamour e, o principal, de sua importância na cultura brasileira, reduzida a um pastiche da cultura europeia. Difícil não achar ridículo o teor de uma observação como a de "torto" ser uma suposta ofensa à capacidade dos deficientes físicos, dado que, no contexto, o adjetivo caracteriza um anjo, não uma pessoa, e – mais importante – dá a esse anjo um traço de simpatia, um caráter menos perfeito e mais falível, a mesma ideia, aliás, presente no adjetivo "gauche", que, no contexto, não significa "ser de esquerda", mas ser desajeitado, acanhado, mal adaptado.

Mesmo assim, não deixa de ser interessante refletir sobre aquilo que cultuamos ou que consideramos valioso no âmbito da cultura. Drummond, por exemplo, recusou-se a ter assento na Academia Brasileira de Letras, vista como símbolo do conservadorismo. O bardo de Itabira não se deixou seduzir pelo fardão tecido com fios de ouro, que muita gente de relevância literária nem de longe similar à sua já vestiu. Drummond não gostava de holofotes, e isso – no distante século 20 – era um traço bem-visto em um escritor ou intelectual.

Se hoje, absolutamente rendidos ao modo publicitário das redes sociais, estamos todos, mesmo os intelectuais, afoitos em busca de alguns segundos de glória, que dizer de alcançar a "imortalidade" concedida aos integrantes do seleto grupo da ABL? No século 21, ninguém recusa holofote. Fardão é pop!

De qualquer modo, a levar às últimas consequências as preocupações dos alunos da hipotética aula de literatura, teríamos de apagar toda a nossa cultura, inclusive a nossa língua, tantas vezes, nestes últimos tempos, acusada de ser um repositório de preconceitos. Por óbvio, isso é impossível, a menos que se deseje adotar outra língua e outra cultura.

No mais, sem dúvida, lutas importantes devem ser travadas para que a sociedade avance, mas condenar a nossa cultura ao degredo, tomando as palavras ao pé da letra e fazendo interpretações moralistas da arte, mais parece um raciocínio torto.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.