Thaís Nicoleti

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O que quer, o que pode esta língua?

Canção 'Língua', clássico de Caetano Veloso, é homenagem à língua portuguesa

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São Paulo

Não é novidade que Caetano Veloso, que acaba de completar 81 anos de idade, é um grande artífice da língua portuguesa. Nas letras de suas canções, nós nos deleitamos com um sem-número de jogos de prosódia, de associações de palavras e de efeitos semânticos inusitados, enfim, de experimentos com as possibilidades do nosso idioma.

Em 1984, lançava a canção "Língua", em que estão condensadas suas percepções e reflexões sobre a língua portuguesa, bem como algumas das suas estratégias de composição. O verso inicial, "Gosto de sentir a minha língua roçar a língua de Luís de Camões", que causou frenesi na longínqua década de 1980, ao evocar a imagem de um beijo gay, tem vários sentidos. Numa perspectiva ampla, remete à ideia de que a língua portuguesa, a despeito de suas variações no tempo e no espaço, mantém os traços característicos que asseguram a sua identidade; de outro, revela um dos seus processos de criação. O leitor poderá captar outros mais.

Uma passagem da letra da canção "O Estrangeiro" pode ilustrar esse roçar de línguas de que fala Caetano. Vejamos estes versos: "O antropólogo Claude Lévi-Strauss detestou a Baía de Guanabara/ Pareceu-lhe uma boca banguela/ E eu menos a conhecera mais a amara?".

Gilberto Gil homenageia Caetano Veloso no aniversário do músico: 'Alma gêmea'
Gilberto Gil homenageia Caetano Veloso no aniversário do músico: 'Alma gêmea' - Saulo Brandão

Além da rima rica de "Guanabara" (substantivo) com "amara" (forma verbal), ouvimos nesse verso final um eco da voz de Camões no soneto "Sete anos de pastor" ("Mais servira se não fora pera tão longo amor tão curta a vida!"), em que as formas do pretérito mais-que-perfeito do indicativo assumem valor condicional.

A expressão "língua de Camões", como sabemos, é uma espécie de sinônimo de língua portuguesa, pois foi o poeta renascentista quem a elevou à forma literária, ao escrever a epopeia "Os Lusíadas", texto de afirmação da nacionalidade lusitana. Camões ousou fazer uso de um idioma "vulgar" (assim eram chamadas as línguas românicas, oriundas do latim) quando os intelectuais ainda escreviam em latim ou mesmo em castelhano, língua que já gozava de mais prestígio que o português na época.

O português era, como mais tarde diria o parnasiano Olavo Bilac, "a última flor do Lácio" (Latium, de onde vem "latim", era a região central da Itália, onde foi fundada a cidade de Roma) – aos poucos o latim se tornaria pó ("Latim em pó", diz Caetano) e a então "inculta e bela" língua portuguesa seria cultivada. No verso da canção "Língua", no entanto, Caetano aciona o sentido literal de "língua de Camões", ou seja, a língua usada pelo poeta no século 16, que, ainda hoje, permanece, mesmo em face das mudanças e variações.

Na canção, Caetano rompe as distâncias tanto temporais como espaciais e mostra que tudo é língua portuguesa. Num engenhoso jogo de palavras, diz: "Gosto do Pessoa na pessoa/ Da rosa no Rosa/ E sei que a poesia está para a prosa/ Assim como o amor está para a amizade", aludindo ao poeta português Fernando Pessoa e ao prosador brasileiro Guimarães Rosa, cujos sobrenomes são também nomes comuns.

"Adoro nomes", diz o poeta baiano. "Nomes de nomes/ Como Scarlet Moon de Chevalier/ Glauco Mattoso e Arrigo Barnabé/ E Maria da Fé/ E Arrigo Barnabé" –e todos os nomes que a criatividade dos brasileiros é capaz de criar segundo as possibilidades formais do português. Ele não diz, mas podemos pensar, por exemplo, no nome "Máicon", uma espécie de aportuguesamento do inglês "Michael" –e em tantos outros que vêm de fora e naturalmente se amoldam à dicção do português.

Caetano, no entanto, diz gostar de "Nomes em ã/ De coisas como rã e ímã", sonoridade típica da língua portuguesa. Também dirá "Gosto de ser e de estar", aludindo a um traço semântico do português que o diferencia do inglês ("to be") e do francês ("être"), por exemplo, línguas que têm uma mesma palavra para expressar os dois significados. Qualquer falante de português distingue "ser" de "estar" automaticamente, o que, no inglês ou no francês, se faz mediante o uso de outros recursos. Essas diferenças, é justo supor, estão diretamente ligadas a diferentes modos de pensar e recortar a realidade.

Pensando nisso, compreendemos o que diz Fernando Pessoa por intermédio de seu heterônimo Bernardo Soares (no "Livro do Desassossego"): "Minha pátria é a língua portuguesa", frase recuperada por Caetano no verso "Minha pátria é minha língua". Ao retomar a frase original, Caetano a amplifica ("A língua é minha pátria/ E eu não tenho pátria, tenho mátria/ E quero frátria"), questionando, pelo viés etimológico, a própria noção de "pátria" (de "pater", pai) e sugerindo os neologismos "mátria" ("mater", mãe) e "frátria" ("frater", irmão), sendo este último o que o eu lírico deseja, pois daria ao conceito um sentido de horizontalidade.

No original, temos a seguinte passagem: "Não tenho sentimento nenhum político ou social. Tenho, porém, num sentido, um alto sentimento patriótico. Minha pátria é a língua portuguesa. Nada me pesaria que invadissem ou tomassem Portugal, desde que não me incomodassem pessoalmente [...]". Em "Língua", há claras alusões ao aspecto político e social da influência estrangeira ("Sejamos imperialistas", provoca o poeta), que se dá por meio da "invasão" da língua e da cultura. Estas, no entanto, em um permanente movimento de resistência interna, remodelam e transformam essas influências. Talvez Bernardo Soares, no seu desassossego, tivesse mais sentimento político e social do que suspeitasse, pois a língua é também um espaço político de afirmação de identidade e resistência.

Caetano é um poeta, sem dúvidas, mas não só. Seu gênero de composição é a "canção", que tem sua especificidade (donde ele poder ser chamado também um "cancionista"). A letra está vinculada à escolha do gênero musical, num amálgama capaz de produzir significados para além do discursivo. O compositor optou por criar um rap ("rhythm and poetry", ou ritmo e poesia), gênero musical popular de origem afro-americana caracterizado pelo tom contestatório, o que não é meramente casual ("Nós canto-falamos como quem inveja negros/ Que sofrem horrores no Gueto do Harlem").

Pode-se dizer que a cultura viva, nascida do conflito e da necessidade de expressão, e as referências histórico-culturais forjam, juntas, a identidade nacional. Assim, Caetano faz desfilarem, na batida do rap, "Flor do Lácio/ Sambódromo/ Lusamérica/ Latim em pó", para, em seguida, indagar "O que quer/ O que pode esta língua?".

"Sambódromo", a propósito, era, em 1984, na época da composição de "Língua", um neologismo, criado por Darcy Ribeiro (então vice-governador do Rio de Janeiro) para nomear a primeira passarela de escolas de samba, obra concebida pelo arquiteto Oscar Niemeyer e inaugurada no mesmo ano. O termo, que, do ponto de vista de sua formação, é um hibridismo (palavra composta de radicais de línguas diferentes), sintetiza o espírito de mistura que caracteriza não só o Carnaval como a própria cultura brasileira. De "samba", do banto (língua africana), e "dromo", do grego, formou-se o termo que nomearia algo tipicamente brasileiro.

Caetano traz para a letra as gírias e o inglês estropiado dos surfistas ("Tá craude brô" –do inglês "crowd", multidão, e "brother", irmão), a mistura de pronomes, comum no Sudeste ("Você e tu"), o "lhe" do Nordeste ("Lhe amo"), a prosódia popular, com corte do "r" de infinitivo ("Qué queu te faço, nego?") ou a apócope do "s" de "mas" em "Ma'de brinquinho, Ricardo!? Teu tio vai ficar desesperado!" –e também "os deles e os delas da TV Globo", recurso usado para evitar as possibilidades de ambiguidade que rondam os pronomes possessivos (seu, sua, seus, suas).

O português lusitano ("Ó Tavinho, põe esta camisola pra dentro/ Assim mais pareces um espantalho!") comparece com o uso da segunda pessoa do singular ("tu") e do "ó" do vocativo e com o emprego de "camisola", que, em Portugal, não é um traje feminino de dormir, mas o mesmo que "camiseta" no Brasil –uma das muitas curiosidades vocabulares que distinguem o português europeu do brasileiro.

Volta a fazer referência à poesia concreta, movimento literário paulista, capitaneado por Augusto e Haroldo de Campos e Décio Pignatari ("Poesia concreta, prosa caótica"), a que já aludira na famosa canção "Sampa", de 1978 ("Alguma coisa acontece no meu coração/ Que só quando cruza a Ipiranga e a avenida São João/ É que quando eu cheguei por aqui eu nada entendi/ Da dura poesia concreta de tuas esquinas" [...] "Eu vejo surgir teus poetas de campos e espaços"). Traz Carmem Miranda, Chico Buarque (alusão à canção "Morena de Angola"), Bob Dylan ("I like to spend some time in Mozambique", verso da canção "Mozambique", de 1976) e, como síntese de toda a liberdade expressiva que a língua permite, Jair Rodrigues ("E deixa que digam, que pensem, que falem").

Não sem uma pitada de ironia, Caetano faz referência a uma questão filosófica que circulava no meio acadêmico ("Está provado que só é possível filosofar em alemão") –o alemão seria a língua da filosofia por causa de sua estrutura, que, grosso modo, permite a criação de palavras-conceito por justaposição de outras. Dito isso, resolve o problema de supostamente não ser o português uma língua apropriada para filosofar: "Se você tem uma ideia incrível/ É melhor fazer uma canção". É exatamente isso o que Caetano faz –e com que habilidade! Vida longa ao nosso poeta, que, a cada canção, provoca a reflexão e homenageia a língua portuguesa.

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