Ótima notícia saber que chega a São Paulo (no Teatro Viradalata, de 5 de abril a 2 de junho) o espetáculo "Diário de um Louco", encenação do conto do russo Nikolai Gógol, que teve sua estreia no ano passado, no Rio de Janeiro. A obra, escrita em 1835, sob a Rússia do tsar Nicolau 1º, embora não seja uma peça teatral, parece ter sido talhada para o palco. Tal é a impressão que sobrevém da atuação precisa do ator Milhem Cortaz, que, sozinho em cena, traz aos nossos dias os dilemas e as angústias de Akcenti Ivánovitch Popríschin, um "conselheiro titular", cuja função era limpar e aparar as pontas das penas com que o diretor da repartição escrevia.
O texto, saído da boca do ator quase sem cortes, contém um misto de ironia e humor, que, aos poucos, se converte em expressão angustiada e angustiante da perda do vínculo com a realidade, até tomar corpo a fantasia de grandeza, que parece ser a única alternativa do personagem à sua vida medíocre. Sob a direção de Bruce Gomlevsky, Cortaz entra na sala pela plateia, molhado, segurando a armação de um guarda-chuva desguarnecido do pano de cobertura.
No palco, duas cadeiras voltadas para a plateia – uma em cada lateral –, um par de botas, um banco e uma mesa de madeira com cintas de contenção (a sugerir camas de manicômio), um regador, uma lata de lixo. O ator veste um velho capote, referência obrigatória no universo gogoliano, e interage com esses elementos, que move, desloca, transforma e ressignifica conforme o texto evolui. Ao lado de sua movimentação no palco, responsável pelo dinamismo da encenação durante os 80 minutos de duração, destaca-se o uso certeiro da voz, que, embora já lhe seja, por si só, um atributo marcante, chega ao virtuosismo.
Em seu monólogo, o personagem, que vai narrando o próprio diário, logo no primeiro dia relata o fato insólito de ter ouvido um diálogo entre duas cadelinhas, o que, embora lhe cause estranhamento, só vai mesmo intrigá-lo quando fica sabendo que elas trocam cartas – afinal, "escrever corretamente é coisa que só um nobre sabe". A maneira absolutamente natural com que Milhem Cortaz alterna palavras e latidos na reprodução da conversa entre os caninos favorece a aceitação, sem reservas, do nonsense do texto pelo espectador, que até sorri pelo prazer de apreciar a sua atuação.
Quando, finalmente, encontra a correspondência canina, Popríschin – no conto, não sabemos ainda se já está mergulhado em seu delírio ou se Gógol está usando o elemento fantástico (como faz em "O Nariz") – descobre que a filha do diretor, por quem nutre uma paixão, está interessada em um cadete, e tudo indica que se vá casar com ele. Dadas as condições sociais de Popríschin, esse amor está fadado à impossibilidade, coisa que lhe desperta a percepção da própria insignificância.
A direção do espetáculo é muito perspicaz ao captar elementos dos três contos petersburguianos de Gógol – "Diário de um Louco", "O Nariz" e "O Capote" – nos quais há claras semelhanças, sobretudo no que se refere à construção dos personagens. Está em "O Capote", por exemplo, a descrição do modo aflitivo pelo qual o personagem sorve rapidamente uma sopa. Na peça, Popríschin evolui de um modo grosseiro de segurar o talher para a sua dispensa, passando a comer como um animal, com a boca encostada no prato. Numa época em que a perda da razão era considerada a perda da humanidade, o personagem late como um cão ou ronca feito um porco, mas também ri e chora.
O personagem conta em seu diário, a certa altura, que escorrega e quase cai. Na encenação, o ator descasca uma banana, cuja casca atira ao chão para aproveitá-la em seguida, já em outra passagem, à maneira de um prestidigitador, que nos guia o olhar, ora revelando, ora suprimindo elementos, em absoluto controle da plateia. Enfia a fruta num copo, do qual irá sorvê-la – mesmo falando enquanto come, Cortaz não perde a dicção nem o tom da interpretação. A casca da banana, que aterrissara no palco como uma flor, logo será convertida no lenço da amada de Popríschin, que é prontamente recolhido em aflitivo gesto de gentileza investido de um afeto desmesurado, cujo destino é a rejeição.
O ator ora se põe sob o banco de madeira, ora o ergue sobre as costas, como se, numa espécie de calvário rumo ao manicômio, Popríschin carregasse a própria cruz/cama. O texto vai num crescendo, que acompanha a evolução do delírio. As datas do diário vão deixando de ser coerentes, e os meses aparecem fora de ordem ou têm seus nomes fundidos (o que o tradutor Paulo Bezerra resolve ao criar a palavra "martubro").
Em algumas datas do diário, vemos Popríschin revelar que passou a maior parte do dia na cama, o que nos faz suspeitar de que já esteja internado desde o início do relato – essa imprecisão é traduzida na montagem pelos bancos do cenário e mesmo por obra do figurino (já sem o capote, a vestimenta do ator evoca uma camisa de força).
Embora a fidelidade ao texto e a componentes do imaginário de Gógol nos remeta ao fim do século 19, a universalidade e – por que não dizer – a atualidade do tema nos oferecem um espelho. Para que esse efeito se explicite, a montagem introduz um elemento que, plasticamente dissonante, produz um solavanco em quem, porventura, esteja a ver a loucura apenas no outro – ou nos outros.Oculto
sob uma cadeira da plateia, um saco contém o que seriam as tão procuradas e reveladoras cartas das cadelinhas escrevinhadoras, mas que nos chega como uma boa quantidade de caixas de remédio. Depois de buscá-las (não por acaso) no espaço do público, o ator/personagem as despeja sobre a mesa, acompanhadas de uma bula que faz as vezes da correspondência finamente encontrada, na qual se desvelará, mais que a frustração do desamor, a dimensão trágica de uma vida mesquinha e sem perspectivas, numa sociedade injusta e opressiva.
A Popríschin resta enlouquecer, o meio mais radical de contestar a ordem vigente. A partir do Dia 1º de seu diário, ele está certo de ser o rei da Espanha, ideia nascida da sua leitura de jornais. O descolamento da realidade imediata sinaliza o ponto em que já não há dúvidas de que ele está em delírio.
Os elementos que sugerem controle – como as cintas de contenção e a camisa de força – aliam-se, no final, ao queixume desesperado de um Popríschin que, internado no manicômio, levou bordoadas e recebeu baldes de água gelada na cabeça, antigas formas de conter o desvario dos doentes mentais. No meio do delírio, chama por sua mãe, a quem pede que o proteja dos que o machucam.
É o fim do texto, quando a plateia já não tem de que sorrir e se vê tocada por um ser humano em estado limite, que se vai reduzindo – por obra da justeza da iluminação, ao centrar o foco só rosto do ator e, pouco a pouco, só em sua boca de dentes grandes – enquanto ressoa no escuro da sala a gargalhada agônica e algo sinistra, como uma espécie de lucidez às avessas, a apontar a insanidade da vida e seus abismos.
Comentários
Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.