Thaís Nicoleti

Thaís Nicoleti - Thaís Nicoleti
Thaís Nicoleti
Descrição de chapéu Todas

Conto Diário de um Louco, de Nikolai Gógol, é encenado em São Paulo

Adaptação traz ator Milhem Cortaz em espetáculo solo

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Milhem Cortaz em montagem de "Diário de Um Louco", de Nikolai Gógol
Milhem Cortaz em montagem de "Diário de Um Louco", de Nikolai Gógol - Divulgação/Priscila Prade

Ótima notícia saber que chega a São Paulo (no Teatro Viradalata, de 5 de abril a 2 de junho) o espetáculo "Diário de um Louco", encenação do conto do russo Nikolai Gógol, que teve sua estreia no ano passado, no Rio de Janeiro. A obra, escrita em 1835, sob a Rússia do tsar Nicolau 1º, embora não seja uma peça teatral, parece ter sido talhada para o palco. Tal é a impressão que sobrevém da atuação precisa do ator Milhem Cortaz, que, sozinho em cena, traz aos nossos dias os dilemas e as angústias de Akcenti Ivánovitch Popríschin, um "conselheiro titular", cuja função era limpar e aparar as pontas das penas com que o diretor da repartição escrevia.

O texto, saído da boca do ator quase sem cortes, contém um misto de ironia e humor, que, aos poucos, se converte em expressão angustiada e angustiante da perda do vínculo com a realidade, até tomar corpo a fantasia de grandeza, que parece ser a única alternativa do personagem à sua vida medíocre. Sob a direção de Bruce Gomlevsky, Cortaz entra na sala pela plateia, molhado, segurando a armação de um guarda-chuva desguarnecido do pano de cobertura.

No palco, duas cadeiras voltadas para a plateia – uma em cada lateral –, um par de botas, um banco e uma mesa de madeira com cintas de contenção (a sugerir camas de manicômio), um regador, uma lata de lixo. O ator veste um velho capote, referência obrigatória no universo gogoliano, e interage com esses elementos, que move, desloca, transforma e ressignifica conforme o texto evolui. Ao lado de sua movimentação no palco, responsável pelo dinamismo da encenação durante os 80 minutos de duração, destaca-se o uso certeiro da voz, que, embora já lhe seja, por si só, um atributo marcante, chega ao virtuosismo.

Em seu monólogo, o personagem, que vai narrando o próprio diário, logo no primeiro dia relata o fato insólito de ter ouvido um diálogo entre duas cadelinhas, o que, embora lhe cause estranhamento, só vai mesmo intrigá-lo quando fica sabendo que elas trocam cartas – afinal, "escrever corretamente é coisa que só um nobre sabe". A maneira absolutamente natural com que Milhem Cortaz alterna palavras e latidos na reprodução da conversa entre os caninos favorece a aceitação, sem reservas, do nonsense do texto pelo espectador, que até sorri pelo prazer de apreciar a sua atuação.

Quando, finalmente, encontra a correspondência canina, Popríschin – no conto, não sabemos ainda se já está mergulhado em seu delírio ou se Gógol está usando o elemento fantástico (como faz em "O Nariz") – descobre que a filha do diretor, por quem nutre uma paixão, está interessada em um cadete, e tudo indica que se vá casar com ele. Dadas as condições sociais de Popríschin, esse amor está fadado à impossibilidade, coisa que lhe desperta a percepção da própria insignificância.

A direção do espetáculo é muito perspicaz ao captar elementos dos três contos petersburguianos de Gógol – "Diário de um Louco", "O Nariz" e "O Capote" – nos quais há claras semelhanças, sobretudo no que se refere à construção dos personagens. Está em "O Capote", por exemplo, a descrição do modo aflitivo pelo qual o personagem sorve rapidamente uma sopa. Na peça, Popríschin evolui de um modo grosseiro de segurar o talher para a sua dispensa, passando a comer como um animal, com a boca encostada no prato. Numa época em que a perda da razão era considerada a perda da humanidade, o personagem late como um cão ou ronca feito um porco, mas também ri e chora.

O personagem conta em seu diário, a certa altura, que escorrega e quase cai. Na encenação, o ator descasca uma banana, cuja casca atira ao chão para aproveitá-la em seguida, já em outra passagem, à maneira de um prestidigitador, que nos guia o olhar, ora revelando, ora suprimindo elementos, em absoluto controle da plateia. Enfia a fruta num copo, do qual irá sorvê-la – mesmo falando enquanto come, Cortaz não perde a dicção nem o tom da interpretação. A casca da banana, que aterrissara no palco como uma flor, logo será convertida no lenço da amada de Popríschin, que é prontamente recolhido em aflitivo gesto de gentileza investido de um afeto desmesurado, cujo destino é a rejeição.

O ator ora se põe sob o banco de madeira, ora o ergue sobre as costas, como se, numa espécie de calvário rumo ao manicômio, Popríschin carregasse a própria cruz/cama. O texto vai num crescendo, que acompanha a evolução do delírio. As datas do diário vão deixando de ser coerentes, e os meses aparecem fora de ordem ou têm seus nomes fundidos (o que o tradutor Paulo Bezerra resolve ao criar a palavra "martubro").

Em algumas datas do diário, vemos Popríschin revelar que passou a maior parte do dia na cama, o que nos faz suspeitar de que já esteja internado desde o início do relato – essa imprecisão é traduzida na montagem pelos bancos do cenário e mesmo por obra do figurino (já sem o capote, a vestimenta do ator evoca uma camisa de força).

Embora a fidelidade ao texto e a componentes do imaginário de Gógol nos remeta ao fim do século 19, a universalidade e – por que não dizer – a atualidade do tema nos oferecem um espelho. Para que esse efeito se explicite, a montagem introduz um elemento que, plasticamente dissonante, produz um solavanco em quem, porventura, esteja a ver a loucura apenas no outro – ou nos outros.Oculto

sob uma cadeira da plateia, um saco contém o que seriam as tão procuradas e reveladoras cartas das cadelinhas escrevinhadoras, mas que nos chega como uma boa quantidade de caixas de remédio. Depois de buscá-las (não por acaso) no espaço do público, o ator/personagem as despeja sobre a mesa, acompanhadas de uma bula que faz as vezes da correspondência finamente encontrada, na qual se desvelará, mais que a frustração do desamor, a dimensão trágica de uma vida mesquinha e sem perspectivas, numa sociedade injusta e opressiva.

A Popríschin resta enlouquecer, o meio mais radical de contestar a ordem vigente. A partir do Dia 1º de seu diário, ele está certo de ser o rei da Espanha, ideia nascida da sua leitura de jornais. O descolamento da realidade imediata sinaliza o ponto em que já não há dúvidas de que ele está em delírio.

Os elementos que sugerem controle – como as cintas de contenção e a camisa de força – aliam-se, no final, ao queixume desesperado de um Popríschin que, internado no manicômio, levou bordoadas e recebeu baldes de água gelada na cabeça, antigas formas de conter o desvario dos doentes mentais. No meio do delírio, chama por sua mãe, a quem pede que o proteja dos que o machucam.

É o fim do texto, quando a plateia já não tem de que sorrir e se vê tocada por um ser humano em estado limite, que se vai reduzindo – por obra da justeza da iluminação, ao centrar o foco só rosto do ator e, pouco a pouco, só em sua boca de dentes grandes – enquanto ressoa no escuro da sala a gargalhada agônica e algo sinistra, como uma espécie de lucidez às avessas, a apontar a insanidade da vida e seus abismos.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.