Tinto ou Branco

Tudo que você sempre quis saber sobre vinho, mas tinha medo de perguntar

Tinto ou Branco - Tânia Nogueira
Tânia Nogueira
Descrição de chapéu Todas mudança climática

Se o clima muda, mudam também os vinhos

Como tudo o que você come e bebe, vinho será afetado por alterações climáticas

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Já ouviu falar de châteauneuf-du-pape? Um vinho francês super bacanudo do Vale do Rhône? Pois é, o châteauneuf-du-pape corre sério risco de desaparecer em breve. Não só ele, mas também uma série de outros vinhos de denominações de origem importantes e tradicionais. Ouvi isso durante um almoço promovido pela importadora Grand Cru, enquanto degustava o delicioso Xavier Vignon Arcane la Papesse Châteauneuf-du-Pape 2016. Quem disse foi Anaëlle Jagielski, gerente de exportação da vinícola Xavier Vignon.

Segundo ela, o sul do Rhône inteiro corre risco. "Está ficando muito quente", afirma. "É cada vez mais difícil conseguir a acidez necessária para obter um vinho equilibrado." Por esse motivo, o enólogo e proprietário da vinícola, que empresta seu nome a ela, teria comprado terras nas ainda pouco badaladas subdenominações de Ventoux e Beaumes-de-Venise: ambas têm características singulares que as distinguem do resto do sul do Rhône e as fazem mais preparadas para o aquecimento climático que já começou.

duas taças de vinho com fogo atrás
Quais os efeitos nos aromas dos vinhos provenientes de vinhedos expostos à fumaça de grandes incêndios? - freepik/olayola

A pequena cadeia de montanhas Dentelles de Montmirail, que se encontra na região delimitada da denominação Beaumes-de-Venise, tem um solo único. Por ser um afloramento do período triássico, trouxe para superfície um solo ocre, capaz de reter muita água, que normalmente se encontra a um quilômetro e meio de profundidade. Já Ventoux está a uma altitude superior à de outras denominações no seu entorno, assim, está mais exposto ao frescor do vento Mistral.

Esses dois vinhedos próprios representam apenas 40 hectares. Produtor de um milhão de garrafas ao ano, Xavier Vignon compra uvas de todo o Rhône e produz vinhos de diferentes denominações. Vinhos muito interessantes. Seu Cotês du Rhône branco (R$ 159,90), por exemplo, consegue ser muito elegante e fresco apesar de todo que tem feito. "Isso é possível porque trabalhamos com uvas compradas", diz Anaëlle. "Conseguimos trazer uvas de todo o Rhône, inclusive do norte, que é mais fresco."

garrafa de vinho entre duas taças
Com 94 pontos do Robert Parker, esse châteauneuf-du-pape é espetacular. Triste pensar que no futuro isso possa desaparecer - Tânia Nogueira/arquivo pessoal/@tinto_ou_branco

Saí do almoço feliz com o que tinha bebido, mas encafifada com essa história de châteauneuf-du-pape estar indo pro saco. Não porque toda hora eu tome Châteauneuf-du-Pape, um vinho caro (o La Papesse, por exemplo, custa R$ 1.019,92), mas, sim, porque isso me soou como um sinal de que as mudanças climáticas estão se acelerando. Trombetas do apocalipse.

Que eu soubesse, por enquanto, o aquecimento do planeta estava sendo benéfico para a viticultura. Eu mesma escrevi sobre isso mais de uma vez. "Os vinhos do mundo nunca foram tão bons, pois as uvas nunca amadureceram tão bem", sempre algo assim.

Sempre soube, é claro, que essa era uma fase passageira. Só não sabia (e ainda não sei, espero) quão efêmera ela seria. A gente quer sempre acreditar que a desgraça está lá longe. Porém, o fato de que já estejam falando no desaparecimento de uma denominação de origem tão importante quanto châteauneuf-du-pape me parece um sinal de que o desastre está mais próximo do que a gente imagina.

Aliás, só mais um sinal. Não faltam indícios de que a situação do planeta está a ponto de se tornar irreversível. Vide as enchentes no sul no primeiro semestre e a seca na Amazônia agora. Como se não bastasse, o Brasil está em chamas e isso deve acelerar ainda mais o processo de mudanças climáticas, já que diminui a cobertura vegetal.

Para os reclamões de plantão não dizerem que estou fugindo do tema deste blog, que é vinho, é bom lembrar que vinícolas e vinhedos também podem queimar. Vários deles queiram em 2023 no Chile.

No fim de semana passado, um incêndio quase pegou os vinhedos de uma vinícola do Mato Grosso do Sul, a Terroir Pantanal. É um projeto lindo que acabou de vinificar seus primeiros vinhos. Morro de vontade de conhecer. Outro incêndio quase chegou ao pomar e ao lagar da fazenda do Azeite Sabiá, o mais premiado do Brasil, em Santo Antônio do Pinhal, São Paulo.

Nos dois casos, felizmente, foi possível conter as chamas antes que elas entrassem nas propriedades. Bia Pereira, sócia do Azeite Sabiá, não sabe o que causou o incêndio no terreno ao lado. "Viram um grupo de pessoas entrando no terreno e, quando eles saíram, o fogo começou. Mas vai saber…"

Já Gilmar França, proprietário da Terroir Pantanal, acredita em causas naturais ou acidente. "Às vezes, um pequeno ato de queimar o lixo de uma fazenda pode provocar um incêndio", diz. "Até uma bituca de cigarro ou uma fagulha de fogão a lenha. Uma garrafa de vidro no mato pode começar o fogo".

De qualquer forma, só queima porque está mais seco do que o normal. Na minha opinião, no entanto, tem um monte de Neros por aí tacando fogo em Roma, digo, no Brasil. Um grupo sem a menor noção das consequências disso para o seu próprio futuro. Gente que vem tentando incendiar o Brasil de todas as formas possíveis há uma década.

O pior é que agora me parece que estão mais perto do que nunca de atingir seu objetivo de gerar um caos completo. Não vejo o governo reagindo com a firmeza necessária. Faltam recursos materiais, falta o apoio desse Congresso pavoroso (eleito em boa parte pelos Neros e seus apoiadores), verdade. Porém, quando Lula fala em asfaltar a BR-319, que liga Manaus a porto Velho, para resolver o problema de locomoção causado pela seca na Amazônia, me parece que falta também o entendimento da gravidade do problema ambiental.

Dito isto, não vejo ninguém na oposição que pareça mais bem intencionado nesse sentido do que o governo. Só os movimentos e entidades socioambientais parecem ver que o rei está nu, ou seja, que, se não fizermos nada, vamos morrer todos queimados, sufocados, de sede ou afogados em algum desastre climático.

Os movimentos indígenas, estes sim, seguem resistindo e lutando pela floresta em pé. Quem sabe eles nos salvarão. Em 1998, houve um grande incêndio em Roraima que durou 63 dias. Lembro bem que isso era destaque no Jornal Nacional toda noite.

Até que um dia a Funai levou a Boa Vista os pajés caiapó Kukrit e Matí-í para fazerem a dança da chuva. Tudo isso com cobertura da TV. Os pajés fizeram o ritual e declararam que no dia seguinte choveria muito. E choveu. Choveu tanto que alagou várias ruas de Boa Vista e apagou 95% do incêndio.

Coincidência ou não, achei lindo. Apesar de ter começado a chover um pouco neste fim de semana em alguns pontos do país, há poucas esperanças de que essa chuva acabe com os incêndios. Podíamos tentar os pajés outra vez. Mas quantos pajés ainda restam por aí? Quantos não encontraram Jesus? Bom, isso é uma outra história. Voltemos ao vinho.

Os rios flutuantes de fumaça terão um efeito imprevisível na safra 2024 dos vinhos de inverno. Pelo menos naqueles que colheram as uvas depois que o fogo e a fumaça começaram a se espalhar de fato.

Anos atrás, vinícolas da Califórnia tiveram de se desfazer de boa parte de sua produção por conta dos aromas desagradáveis advindos da fumaça de grandes incêndios. Aromas esses que só apareceram meses depois da fermentação (ou seja, eles gastaram dinheiro fabricando um vinho que teve de ser jogado fora).

E essa chuva preta? Que efeito ela não terá no solo dos vinhedos?

Mas quer saber a verdade? Não estou tão preocupada assim com a safra 2024, nem fico pensando se poderei ou não tomar garrafas de châteauneuf-du-pape, champanhe ou barolo no futuro. O que me preocupa de fato é o efeito dessa chuva preta na alface e no tomate que como todo dia. E o meu grande medo é não ter água potável suficiente para beber um dia.

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