Tinto ou Branco

Tudo que você sempre quis saber sobre vinho, mas tinha medo de perguntar

Tinto ou Branco - Tânia Nogueira
Tânia Nogueira
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Trazer vinho caro na mala é crime?

Depende. Bafo no Tuju alerta para um problema antigo e comum de sonegação fiscal

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A apreensão de 450 garrafas de vinhos caríssimos no Tuju, badalado restaurante do Jardim Paulista com duas estrelas no Guia Michelin, e na Clarets, importadora focada em vinhos de alta gama, na quarta-feira (7), é o bafo do momento, dentro e fora do mundo do vinho. Afinal, quem não adora uma intriga? A Receita Federal alega haver indícios de descaminho (entrada no país sem o pagamento dos devidos impostos) e o restaurante e a importadora alegam que esses vinhos pertenciam à adega pessoal do empresário Guilherme Lemes, sócio de ambos, e teriam sido vendidos legalmente ao restaurante pela importadora.

A questão é: quais os limites entre uma transação privada e uma atividade comercial? Segundo o auditor fiscal Alan Towersey, que comandou as diligências que fizeram às apreensões e está à frente da investigação apelidada de Operação Bordeaux, um colecionador privado ou qualquer pessoa que tenha uma garrafa de vinho cara pode vender esse vinho e nem precisa incluir essa venda na declaração de imposto de renda. "Com tanto que ela não represente um ganho patrimonial significativo", diz Towersey.

Sala com muitos vinhos
Operação Bordeaux: Receita Federal faz busca e apreensão na sede da importadora Clarets, em São Paulo - divulgação

Ou seja, se você vender um Saint Émilion Grand Cru por R$ 1 mil, está tudo certo. Porém, se vender um Château Petrus por R$ 27 mil, precisa declarar. Em ambos os casos, o particular pode apenas fazer um recibo simples dessa venda para o comprador. Ele não é sequer obrigado a ter uma nota fiscal de compra. O estado pressupõe boa fé, já que a nota pode ter sido perdida ou o vinho pode ser um presente.

No entanto, caso o comprador seja uma empresa, como algumas do mercado que saem por aí comprando coleções particulares, essa tem a obrigação de emitir uma nota fiscal de entrada e incluir a transação no balanço fiscal do ano. Por sua vez, caso o particular em questão faça vendas com regularidade, mesmo que sejam de valores não tão altos, isso também configura atividade comercial e essas vendas são passíveis de tributação.

Segundo o auditor, no caso da Operação Bordeaux, há uma quebra na cadeia de notas fiscais. "A Clarets e o Tuju fazem parte de um grupo econômico que inclui outras empresas", diz. "Elas são ligadas entre si por sócios que fazem parte de mais de uma empresa, mas não obrigatoriamente de todas. Uma compra da outra e emite nota fiscal. São arranjos feitos para blindar patrimonialmente os sócios em casos de ações judiciais, por exemplo."

Isso é ilegal? "Não obrigatoriamente", diz. "Depende de detalhes. Eles podem usar brechas da lei. Neste caso, nossas investigações prévias chegaram num ponto em que uma empresa do grupo comprou vários vinhos de uma empresa de fora do grupo. E essa empresa não tem nota fiscal de entrada".

Guilherme Lemes me disse que desconhece essa empresa. "Os vinhos eram da minha coleção particular e eu vendi para a Clarets, que vendeu para o restaurante", diz Lemes. "A adega do Tuju tem 5 mil garrafas, adquiridas de 40 importadoras diferentes. Eles inspecionaram todas, estava tudo regular. Essas garrafas são da minha coleção particular. Achei que elas iriam abrilhantar a carta do Tuju."

A operação começou às 13h, simultaneamente nos dois endereços (a Clarets fica no último andar um prédio da rua Frei Caneca). Segundo Towersey, foi deflagrada porque, depois de uma denúncia, a Receita examinou a movimentação do grupo e encontrou indícios de irregularidades. "Na diligência, eles não apresentaram nenhuma documentação que desmentisse as nossas suspeitas", diz. "Os vinhos que supostamente são da coleção particular sequer estavam separados dos outros vinhos da adega do restaurante. Ninguém disse de cara: ‘Esses são do patrão’". O auditor passou primeiro no restaurante e, depois, na importadora. Segundo ele, foram confiscados 352 vinhos na Clarets e 90 no Tuju, 452 garrafas no total. Estima-se que o valor total da apreensão seja de R$ 1 milhão, mais de R$ 2,2 mil em média por garrafa. Segundo ele, ainda há investigações sobre outros rótulos.

Na importadora, Guilherme Lemes alega que, sim, seus vinhos estavam separados numa adega climatizada na sua sala. Towersey me confirmou essa informação pelo whatsapp, mas não me explicou depois por que isso não fez diferença. Lemes queixa-se principalmente da exposição pública.

"Eles ainda estavam nos meus estabelecimentos e a assessoria de imprensa da Receita Federal já estava soltando releases sobre a operação", diz. "O número divulgado foi de 4 mil garrafas apreendidas que somariam R$ 6 milhões em valor de mercado. Completamente diferente da realidade. Produtores com quem eu trabalho me enviaram mensagens contando que receberam emails de outras importadoras com essas informações falsas".

Sem dúvida, o dano para a imagem já está feito. Fora o prejuízo com um jantar para 17 pessoas com ingressos a R$ 14.990,00, mais 15% de serviço, que aconteceria na quinta-feira (8) e foi cancelado. Chamado de "O Melhor dos Estados Unidos, 100 Robert Parker", o jantar de 10 passos do chef Ivan Ralston seria acompanhado de 19 vinhos premiados dos Estados Unidos.

Pelas minhas contas, que foram feitas quase todas em cima dos preços de um único e-commerce dos Estados Unidos, o Benchwork Wine Group, que apareceu em primeiro lugar na pesquisa em 17 dos casos, a soma do valor (lá nos EUA) dessas 19 garrafas daria cerca de US$ 10,5 mil, o que dá cerca de US$ 620 por pessoa, sem impostos. Eram vinhos icônicos como Screaming Eagle e Opus One.

Acrescentando os impostos de importação, que giram em torno de 36,5%, mais 3,5% de ICMS do Estado de São Paulo, o custo em vinhos seria de R$ 4.863,00 por pessoa. Sobram 10 mil por cabeça para o transporte das garrafas até o Brasil e a comida. Ou seja, o custo do vinho legal não seria impedimento para a realização do evento, como pensei que talvez fosse antes de fazer as contas.

Por mais que eu admire o trabalho da Clarets como importadora de grandes vinhos da Borgonha, por exemplo, e do serviço de vinhos do Tuju, que é impecável, só as investigações poderão provar se houve ou não descaminho. De qualquer forma, o caso serviu para alertar o público e o mercado para uma prática comum.

"Isso não costuma ter ligação com as quadrilhas de descaminho de vinhos mais baratos do no Sul do Brasil", diz Luciano Stremel de Barros, presidente do Instituto de Desenvolvimento Econômico e Social de Fronteiras, que estuda o sério problema do comércio ilegal de vinhos nas fronteiras do Brasil. "Isso é muito mais antigo que o descaminho de fronteira. Mas é difícil de controlar. O cara vende uma garrafa no restaurante sem nota fiscal e substitui por outra igual. Ele compra x garrafas legalmente e vende x mais 5, sendo que essas cinco vieram na mala."

A gente ouve muito dizer que os impostos são extorsivos. E são mesmo. Isso gera uma certa torcida pela sonegação. O consumidor se solidariza com o dono de bar e restaurante que traz garrafas na mala e vende uma taça como raridade. Sente-se levando vantagem junto. Só que esquece que o valor que não foi arrecadado deixou de entrar para serviços públicos de seu interesse, como saúde e educação.

Não é difícil trazer uma garrafa mais cara na mala para não pagar imposto. Na aduana dos aeroportos cada viajante tem direito a trazer até U$ 1 mil em vinhos, sendo no máximo 12 litros ou 16 garrafas. Acima dos mil dólares, há um imposto de 50% a pagar -- isso caso o contribuinte declare que está trazendo o vinho. Caso não declare e seja pego na fiscalização do aeroporto, essa taxa sobe para 100%. E não adianta trazer nota fiscal falsa porque eles sabem muito bem os preços dos vinhos. Mas há um desconto de 25% para pagamento à vista.

Muitas vezes, no entanto, as pessoas não são paradas na fiscalização. Podem estar trazendo 16 garrafas de Opus One, por exemplo, que, se vendidas, podem dar um lucro de US$ 16 mil. Se forem pegas, a pessoa pode sempre alegar consumo próprio e não terá problemas com a justiça. Quando a ideia é comercializar, no entanto, ser pego passa a ser um risco calculado. O número de vezes em que a pessoa não é pega é muito maior do que aqueles em que ela é. Ou seja, nesse caso, o crime compensa.

O que não quer dizer que não há consequências. Segundo Towersey, nessa história envolvendo Tuju e Clarets, caso não apresente provas de que tudo foi feito de maneira legal, o grupo terá de pagar uma multa de 100% sobre o valor da mercadoria na sua origem. Os sócios ficariam ainda sujeitos a uma ação criminal. "Quando provamos que houve sonegação de impostos, entregamos o caso para o Ministério Público que decide entre fazer uma denúncia, pedir mais investigações para a Polícia Federal ou arquivar o caso."

Francamente, espero que consigam provar sua boa fé no caso. A Clarets tem uma das melhores curadorias em vinhos da cidade e o Tuju é delicioso. Já escrevi muito bem sobre eles. Prometo que vou acompanhar e manter vocês informados.

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