Tinto ou Branco

Tudo que você sempre quis saber sobre vinho, mas tinha medo de perguntar

Tinto ou Branco - Tânia Nogueira
Tânia Nogueira
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Um vinho de R$ 11 mil é tão melhor do que aquilo que você bebe?

Tomei o Barca Velha 2015, que custa isso. Descubra aqui o que achei

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São Paulo

Esta semana, bebi um vinho que custa R$ 10.870,00. Difícil de acreditar, né? Quase 11 mil. O cenário onde ele foi servido, contudo, era igualmente inacreditável e até fazia parecer trivial algo como um vinho de quase 11 mil reais. O vinho era o Barca Velha 2015 e o jantar de lançamento da safra, promovido pela importadora Zahil aconteceu em um palacete da avenida Higienópolis (São Paulo) que, na virada do século 19 para o 20, foi residência da mulher mais chique da cidade, a Dona Veridiana Prado. Uma construção imponente com um jardim enorme, em uma das regiões mais caras da capital paulista, a mansão hoje pertence ao Iate Clube de Santos. O jantar, preparado pelo chef Marcelo Corrêa Bastos, estava perfeito e pedia um grande vinho. A estrela da noite, o Barca Velha 2015, casou com tudo lindamente. Luxo só.

Tinto do Douro, o Barca Velha, da Casa Ferreirinha, para quem não sabe, é o vinho mais famoso (e mais caro) de Portugal. Um ícone de verdade (não como esse monte de vinho que se auto denomina ícone). O que achei dele? Estava maravilhoso, claro. Incrivelmente mais fresco e fácil de beber do que eu esperava, mas com toda a potência e complexidade que imaginava. Bebi umas três ou quatro taças. Ainda assim, mesmo o leitor mais condescendente deve estar se perguntando: será que vale tudo isso? Veja a história e julgue você mesmo.

garrafa e taça de vinho tinto
Durante o jantar de lançamento do Barca Velha 2015, foram abertas várias garrafas do vinho de R$ 11 mil - Tânia Nogueira/arquivo pessoal/@tinto_ou_branco

Criado em 1952, por Fernando Nicolau de Almeida, a partir de uvas da Quinta do Vale Meão, no Douro Superior, que à época integrava o grupo familiar A.A. Ferreira, o Barca Velha tornou-se uma lenda não só por sua qualidade, que sempre foi notória, mas também por ter sido o primeiro grande tinto produzido no Douro. Até então, ali só se produzia uvas para vinhos do Porto e os produtores de uva da região estavam nas mãos das grandes casas de vinho do Porto da Vila Nova de Gaia, a maioria delas controladas por famílias inglesas. Era proibido engarrafar vinho do Porto fora da Vila Nova de Gaia. Os portugueses produziam vinho a granel, que era vendido para essas grandes casas, ao preço que elas bem entendessem (pelo menos, essa é a versão dos portugueses, nunca ouvi a dos ingleses, rs).

Isso, como dá para imaginar, gerava uma certa animosidade entre os empresários dos dois lados, apesar dos negócios que faziam juntos. A vinícola Ferreira era uma exceção. Tinha quintas no Douro e a sua própria casa de vinho do Porto em Gaia. Era a única produtora de Porto que sempre foi de portugueses. Os proprietários descendiam da lendária Dona Ferreirinha, viúva que, no século 19, se saira melhor do que a maioria dos homens e fizera os negócios crescerem muito.

Com a criação do Barca Velha, o trineto de Dona Ferreirinha Fernando Nicolau, além de ser solidário com os portugueses do Douro, queria um vinho que não precisasse de tantos anos de guarda na vinícola quanto o Porto para ser vendido. Dá para imaginar que, nos anos 1950, já não era tão simples trabalhar com um produto que só seria vendido dali a 10, 20, 40 anos. Com o seu Barca Velha, resolveu esse problema e abriu caminho para que os outros portugueses se libertassem dos ingleses.

Todo mundo queria provar aquele vinho. Isso fez a marca virar uma lenda e o preço, que nunca foi baixo, subir sempre. Tão alto que, imagino, influenciou na proposta que fez com que, em 1987, a família vendesse a AA Ferreira para o grupo Sogrape (o maior de Portugal). Fernando Nicolau, no entanto, permaneceu como presidente e enólogo chefe da companhia até 1998, quando pediu demissão e foi dedicar-se à Vale do Meão, sua propriedade particular que não estava incluída na venda. Assim, o Barca Velha passou a ser produzido pela Sogrape com uvas da Quinta da Leda, outra propriedade do grupo.

Se engana, porém, quem acha que o vinho caiu de qualidade. Não caiu e o mito tampouco se desfez, tanto que o preço é o que é. "O que a gente trouxer, a gente vende", contou Antoine Zahil para os convidados que estavam provando a safra 2015. "Tem um público que sempre está atrás". O vinho, atualmente feito pelo enólogo Luís Sottomayor, só sai quando a safra é excepcional. A última antes desta é de 2011. Caso contrário, as uvas vão para o segundo vinho da casa, o Casa Ferreirinha Reserva Especial (a safra 2014 está por R$ 4.800,00), vinho que também provamos durante o jantar. Cada safra do Barca Velha tem um corte diferente, dependendo do que o clima propiciou naquele ano. No Barca Velha 2015 entrou touriga franca (43%), touriga nacional (40%), souzão (10%), tinto cão (5%) e tinta roriz (2%).

E aí, vale 11 mil ou não vale? "Se tem quem pague, vale", disse o enólogo da Bairrada Luís Pato, outra figura bastante reverenciada pelos amantes de vinhos portugueses, durante um almoço que tive com ele no dia seguinte ao jantar. Sim, no sistema capitalista, salvo algumas interferências dos governos, os preços são regidos pelo mercado. Enquanto houver procura, podem subir indefinidamente.

No preço de qualquer mercadoria, claro, costuma estar embutido o custo. Vários fatores interferem no custo de um vinho: o preço da terra onde a uva está plantada, o gasto para implantação do vinhedo, o rendimento por hectare, a mão-de-obra, os equipamentos usados na vinificação, o uso ou não de barricas de carvalho, a procedência das barricas, o tempo de estágios nessas barricas, o tempo em garrafa antes do lançamento e muitos outros detalhes. Todos esses fatores influenciam também na qualidade do produto final, mas há um fator, que não está atrelado ao custo, mas ajuda a determinar o preço e que não interfere na qualidade do produto, pelo contrário, depende dela: a fama.

Tirando algumas regiões vinícolas do mundo onde o preço da terra extrapolou qualquer limite razoável, como a Borgonha, na França, ou Barolo, na Itália, somando todos os custos citados acima, o investimento total de um produtor em uma garrafa de vinho, chutando alto, não deve ultrapassar muito os 100 euros (R$ 573,00). Atenção, esses são os meus cálculos, pelo que já vi por aí, mas não são precisos. Em todo caso, vamos imaginar que a garrafa chegue pelo dobro disso (200 euros ou R$ 1.146,00) ao consumidor final na Europa. No Brasil, no mínimo, ela custaria três vezes mais. Ou seja, pouco menos de R$ 3.500,00. Esse seria mais ou menos o preço do vinho mais caro caso não existisse a lei da oferta e da procura (já é bem mais do que você imaginava, não é?). O resto é fama, um bom storytelling e um bom marketing.

Não estou dizendo de forma alguma que não vale a pena comprar o Barca Velha. Vale para quem tem dinheiro e quer ter essa experiência. Eu mesma já comprei um Barca Velha. Não paguei essa fortuna, é claro, nunca fui rica. Comprei com uma turma de amigos com quem viajei por Portugal em 2011. Num restaurante na Ilha da Madeira, encontramos um Barca Velha 2000 por 300 euros, o que já estava bem abaixo do preço praticado na época (hoje a safra 2011 está custando 900 euros por lá e a 2015 vai custar mais). Éramos dez pessoas. Cada um desembolsou 30 euros e provou um golinho de Barca Velha. Valeu? Sim, muito. Saí toda feliz. A compra em grupo é a saída para quem não tem grana e quer provar vinhos caros.

Se a ideia, porém, é apenas tomar um grande vinho (não uma lenda), há opções por um preço bem menor (o que não quer dizer que sejam baratinhos). O Luís Pato, por exemplo, produz vinhos para o dia-a-dia (ótimos por sinal) e grandes vinhos. O branco Luis Pato Maria Gomes 2022, seu vinho mais barato no site da importadora Mistral, custa R$ 132,10. O Quinta do Ribeirinho Pé Franco 2017, o mais caro, sai por R$ 2,376, 21, mas é uma exceção. A maioria dos seus grandes vinhos custam menos de mil reais.

Cito o Pato porque, como já disse acima, no dia seguinte ao jantar do Iate Clube, fui a um almoço para a imprensa com o Luís Pato e a comparação foi inevitável. Fizemos uma vertical do seu Vinha Barrosa. Vertical é uma degustação de várias safras. Provamos as safras 2008, 2014, 2015 e 2017. Todas elas fenomenais. A 2008 já tinha aromas terciários, aqueles que se desenvolvem com o tempo. Senti bem presente o cogumelo, mas ainda havia bastante fruta escura, ótima acidez… Ou seja, é um vinho que dura décadas, e essa é a marca principal dos grandes vinhos. No site da Mistral, encontrei as safras 2014 e 2008, a R$ 657,75 e R$ 773,28, respectivamente.

Outro grande português que tomei recentemente foi o Periquita Clássico, um 100% castelão. Não confunda com o Periquita comum de supermercado, que é muito gostoso, mas não é um grande vinho. O Periquita Clássico vem da ideia da José Maria da Fonseca, nos anos 1990, de fazer um vinho como se fazia em 1941 quando o Periquita foi lançado, um vinho com taninos mais rugosos e que precisa de muito mais tempo em garrafa para ser bebível. Foram usadas técnicas parecidas com as do passado e o vinho seguiu esse padrão. Por isso, o Clássico só vai para o mercado quando e se o enólogo diz que ele está pronto. Atualmente o que está no mercado é o 2014 (R$ 655,99 na TodoVino).

Numa visita à Península de Setúbal, em abril deste ano, estive com um grupo de jornalistas na José Maria da Fonseca. Ali provamos um Periquita Clássico 2014 e provocamos António Soares Franco, sétima geração da família e atual administrador da vinícola, a fazer uma vertical do rótulo. Queríamos provar a capacidade de envelhecer do vinho. A gente sempre faz esse tipo de brincadeira. Nunca imaginávamos que ele levaria a sério. Dois meses depois, António desembarcava em São Paulo com sete safras do Periquita Clássico debaixo do braço para provarmos: 1992, 1994, 1995, 1999, 2001, 2004 e 2014.

Adorei. O vinho não envelhece bem. Envelhece fabulosamente. Todas as safras estavam vivas. Cada uma com sua personalidade. Achei a de 1994 mais evoluída que a de 1992. Tinha um aroma de rosa seca, daquelas que a gente guarda no meio do livro, que eu amo. Foi a minha preferida. Todos tinham fruta negra, tabaco, alcaçuz em diferentes graus. Eram muito elegantes, mas conservavam uma certa rugosidade. Em resumo, grandes vinhos.

Ou seja, se você tem R$ 11 mil sobrando e quer provar um vinho que fez história, manda bala. Se não tem ou tem mas não quer gastar, fique tranquilo porque nem todo grande vinho custa isso. Sei que 600 contos ainda é caro, mas, dividido por dez pessoas, como eu fiz na viagem à Ilha da Madeira, tanto os do Luís Pato quanto o Periquita Clássico não pesam no bolso. Vai lá, se arrisca a provar um grande vinho! Só cuidado para não se acostumar!

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