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Diversidade afetiva, sexual e de gênero

Todas as letras - Renan Sukevicius
Renan Sukevicius

A última porta do armário

Muitos LGBTs passam a vida se assumindo; o faço pela última vez

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Eu não sabia que o armário tinha tantas portas. Você abre uma, a primeira, e se depara com outra. Passa pela segunda e aí, surpreendentemente, há outra. No nem sempre longo corredor da vida de uma pessoa LGBT+ podem existir muitas portas. Eu mesmo devo ter passado por milhares delas do momento que entendi que era gay até agora.

"Se assumir" para a família, para os amigos e para os colegas de trabalho não resolve as coisas num passe de mágica. De quando saquei que não era heterossexual assim como a maioria dos meus amigos da rua na adolescência até ter a grande conversa sobre sexualidade com minha mãe, aos 20 e poucos anos, tentei me adequar à vida heteronormativa.

Não é incomum ouvir de gays e lésbicas, principalmente, os métodos que tiveram de criar para sobreviver à adolescência: pensar no jeito de falar, no movimento das mãos, nos olhares e na expressão de desejos. Uma fuga incansável de todas as pessoas que de alguma forma flagram uma sexualidade dissidente. Essa é também a minha experiência.

Fui alfabetizado, fiz amigos, brinquei na rua, caí de bicicleta, chorei, depois não caí mais, tirei nota vermelha, peguei recuperação, passei de ano, ganhei presente de natal, muitas vezes ganhei o que não queria, outras vezes não ganhei nada, mas segui adiante, usei fraldas, aprendi a usar a privada, fiz xixi na cama, depois nunca mais fiz xixi no lugar errado (com exceção de uma vez, já velho, que ri até molhar as calças), fui a matinês, beijei na boca desengonçadamente, depois aprendi (eu acho). E, nesse tempo todo, aprendi a não ser quem eu realmente era.

Dia desses, aos 30, me dei conta do momento em que abri a última porta do meu quase infinito armário. Estou aprendendo a des-ser-me, como disse certa vez o escritor angolano Ondjaki. E dá um trabalho desgraçado desaprender. Aprender qualquer coisa é mais fácil do que desaprender, eu digo com toda certeza.

Fui tomado por um alívio, mas também por uma sensação de vazio. Vez ou outra, minha mão esquerda vai automaticamente em direção à maçaneta, mas não há mais uma barreira que me isole. A homofobia do mundo continua a todo vapor, eu sei, mas a minha foi ferida de morte no peito. Morreu e foi sepultada.

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