Vida de Alcoólatra

O silêncio mortal da bebida

Vida de Alcoólatra - Alice S.
Alice S.

Dois grandes estragos que cometi em viagens por estar bêbada

Relembrar esses vexames reforça minha gratidão pela sobriedade que experimento hoje

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No começo de 2023 fiz uma viagem para uma cidade muito linda da América Latina. Estive fora por 15 dias, conhecendo lugares, provando comidas e conhecendo pessoas. Agora estou revendo as fotografias da viagem, numa espécie de retrospectiva do ano, e me dou conta do quanto isso é inédito na minha vida.

Eu sei dizer exatamente o nome de cada lugar, lembro dos sabores de todas as comidas e revivo momentos maravilhosos. Foi inclusive nessa cidade, conversando com minha amiga Flávia, com quem viajei, que decidi reunir os textos que já tinha escrito sobre minha doença, para depois, vendo o conjunto, pensar o que fazer com eles.

Essa viagem foi muito diferente de todas as outras que fiz na ativa. Naquelas, as memórias são apenas flashes. Os passeios eram sempre sinônimo de bebida. Começava no aeroporto, na rodoviária, na estação de trem, lugares onde eu logo procurava alguma coisinha para beber. Muitas vezes continuava a consumir no trajeto até a casa ou o hotel, e só parava quando adormecia. Sempre gostei muito de viajar, mas a verdade é que investi muito em viagens e experiências das quais pouco usufruí. Estive em muitos lugares fisicamente, mas hoje me dou conta de que nem precisaria ter saído da minha cidade, porque os locais se resumiam a bares e recintos fechados.

Perdia as manhãs, acordava tarde demais. Tenho fotos guardadas aqui na minha gaveta e muitos vexames armazenados dentro de mim. Eu estava viajando para os lugares preferidos de uma alcoólatra: a euforia, a loucura e a insanidade. A cidade em si não importava. Tinha bebida? Ótimo, era o que bastava. Se eu fosse para a praia, teria aquela cervejinha, que nunca foi uma apenas. Assim que chegava em lugares legais, só pensava: o que eu vou beber? Afinal eu estava de férias e meu compromisso era com a bebida.

Dos vexames, me lembro de alguns. Para comemorar meus 30 anos fui a Veneza com meu irmão e minha mãe. A paisagem é cinematográfica e era meu sonho conhecer a cidade. Choveu muito na semana que passamos lá. Um dia, bebemos um pouco a mais por causa do tempo, o que não costumávamos fazer. Naquela época, eu ainda bebia na frente de todo mundo. Entre vinhos e risadas, ficamos relembrando histórias engraçadas da minha infância.

Ponte sobre o rio Rialto, em Veneza 
'Dos vexames, me lembro de alguns. Entre eles, a viagem que fiz a Veneza com meu irmão e minha mãe para comemorar meus 30 anos' - Manuel Cohen/AFP

Aquele almoço estava completo: uma comida maravilhosa regada a muito vinho e em companhia do meu irmão querido e da minha mãe. Nós três ficamos embriagados. A chuva passou e resolvemos seguir caminhando pela cidade. Como ainda estávamos meio tontos, paramos num café para dar uma trégua. Fui na frente e pedi: dois cafés e um conhaque.

Eles estavam na mesa e não viram. No momento em que o moço me entregou o pedido e meu irmão foi até o balcão me ajudar a levar a bandeja para a mesa, ele não acreditou. O quê? A gente acabou de beber um monte e você vai pedir um conhaque? Você tá louca! Pegou a bebida e jogou na pia do bar. Na hora eu não entendi a reação dele, mas hoje compreendo perfeitamente. Eu já manifestava um comportamento compulsivo. Nunca era o suficiente, eu bebia até apagar. Aliás, é impressionante como eu aguentava beber tanto.

Certa ocasião fui visitar uma amiga que morava no exterior e me hospedei na casa dela. Ela trabalhava o dia todo e falou: Vai, Alice, vai aproveitar o dia que à noite marquei um jantar para te apresentar às minhas amigas daqui. Fiquei feliz da vida por passear pela cidade, sem um destino em mente. Peguei metrô, caminhei muito a pé. De vez em quando parava para um trago. Resultado: passei o dia bebendo tudo que encontrava pela frente, fiquei mais em bares do que em qualquer outro lugar. Sei que vi lugares incríveis, mas só lembro das bebidas, cigarros e dos desconhecidos que se tornaram grandes amigos nos bares em que estive. Tudo estava muito engraçado, a julgar por uma fotografia que não tenho ideia de quem tirou: sou eu mostrando o dedo do meio, com um copo enorme de cerveja.

Não sei como me encontrei com minha amiga, só lembro dela, dizendo no dia seguinte, que ficou com muita vergonha, que sempre tinha falado tão bem de mim para as amigas… Estraguei a noite, ela não me reconhecia. Fui inconveniente, repeti as mesmas histórias e caí da cadeira duas vezes. Não lembro de nada, apagão total. Na mesma noite encontrei um amigo que eu tinha convidado a se juntar a nós no jantar. Pelo que me contam, eu não queria saber de conhecer as meninas, apenas fechei conversa com meu amigo, só pensando em beijá-lo e seduzi-lo.

Quando me contam o que fui capaz de fazer, eu quase morro de vergonha. A bebida sempre me levou para uma Alice que não tinha absolutamente nada a ver com minha essência. Então era difícil me perdoar por coisas que eu tinha certeza de que não teria feito.

Relembrar pelo menos dois grandes estragos que cometi em viagens que prometiam ser maravilhosas só reforça minha gratidão pela sobriedade que experimento hoje. Na viagem com a Flávia, bebi muita água, provei muitos sucos e dormi bem. Acordava cedo e tomava um ótimo café da manhã, minha refeição preferida hoje em dia. Tem coisa mais gostosa do que tomar café, comer uma fruta, sentir o gosto de tudo e não ter ressaca? Pra mim, não —atualmente.

Para 2024 estou programando alguns passeios, e pretendo curtir cada sabor, cada encontro, porque é o que busco hoje. Meu corpo pede trégua. E sempre com a mente quieta, a espinha ereta e o coração tranquilo.

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