Vida de Alcoólatra

O silêncio mortal da bebida

Vida de Alcoólatra - Alice S.
Alice S.
Descrição de chapéu Mente

Levei meu primeiro grande esporro por ser alcoólatra sem saber que era um apagão

Não dou risada do episódio porque não teve a menor graça, mas o presente ajuda a ressignificar o passado

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"O presente ajuda a mudar o passado." É real e me sinto na obrigação de dizer isso de modo bem contundente para você que ainda está numa relação péssima com o álcool, achando que todas as atrocidades que cometeu bêbado estão botando uma pá de cal na sua vida.

Durante muitos anos me afoguei em remorsos e arrependimentos. A famosa ressaca moral que no fim do meu alcoolismo ativo já tinha me dominado por completo, agora já posso encarar com um distanciamento. Lembro da primeira vez que levei uma bronca por algo que não fiz. Sim! Porque eu bebia muito e não lembrava de jeito nenhum do que tinha feito – 99% (para mais) eram coisas que eu sequer cogitaria em pensar em sã consciência.

Essa bronca me marcou muito e hoje entendo que ela foi o começo de uma jornada de autoconhecimento. Passava do meio-dia quando minha amiga me ligou e eu atendi, ainda eufórica: "Oi, Rôôôôô, tudo bem, vem aquiiii"... Quando fui interrompida: "Aliiiiiiice, você tem noção do que você fez ontem?"

'Comecei a beber com a noiva indo para a cerimônia e só terminei até desmaiar e despertar, no dia seguinte' - Eric Helgas/The New York Times

Claro que eu não tinha a menor ideia. "Pois é, você passou de todos os limites, foi a pessoa mais irresponsável , mais egoísta, mais..." (enquanto Roberta falava por cerca de dez minutos —ju-ro—, minha cabeça tentava entender por que tanta raiva, e que raios eu tinha feito. Força inútil porque eu não sabia, não sei e jamais teria a menor ideia do que tinha feito).

Creio que posso dizer que na noite anterior com certeza tomei três garrafas de vinho branco misturado com algumas outras coisas que estavam servindo no casamento. (Quantidade apurada com Roberta.) Casamento que eu tinha ajudado a organizar ao longo de três meses porque era da prima da minha amiga —essa que estava no telefone muito, mas muito brava. Meses que preparei desde a lista de convidados, até os remédios do banheiro. (Sim, tinha aquele tubinho amarelo que tanto me ajudava nas noites de bebedeira.). Casamento que durou três meses de produção, um dia de cabelo e maquiagem e mais uma hora depois do sim do casal. Durou pra mim, digo. Não sei se para o casal.

Eu comecei a beber com a noiva indo para a cerimônia e só terminei até desmaiar e despertar no dia seguinte. Somada à bronca de Roberta, a minha tia que estava em casa me disse: "Nossa, Alice, que menino bonito que te trouxe em casa hoje cedo (eu tinha emendado o casamento com um after que foi até de manhãzinha). É seu namorado?" — Q U E M E N I N O?? Comecei a ficar tensa.

Roberta me contou que eu tinha transformado o quarto da produção do casamento num campo de guerra, jogando tudo pro chão numa espécie de fúria e tristeza. Não só estava "possuída", como ainda atirava objetos em direção a Roberta, que tentava (inutilmente) me impedir de continuar naquela toada. Ela não conseguiu me brecar e eu provavelmente quis encontrar alguém que me deixasse beber. Conclusão: havia chegado em casa com um rapaz X. Não tinha ideia de quem era.

O desespero só crescia naquelas três horas que eu passaria tentando desvendar o roteiro do que tinha acontecido comigo. Deus protege os bêbados, não é o que se diz? Pois é. Depois dessas infinitas horas, intercaladas de um calor insano, uma náusea absurda, uma tremedeira e choros compulsivos, descobri que tinha sido um grande amigo que tinha cuidado de mim e me levado pra casa.

O alívio só não foi maior porque Roberta não queria falar comigo e eu, naquele desespero de ressaca, arrependimento, tristeza, levei meu primeiro grande esporro por ser alcoólatra, sem saber que era. Hoje não sou mais tão próxima da Roberta, provavelmente ela não tem a menor ideia da importância que teve para mim e para o começo da minha familiaridade com o alcoolismo. Digo começo porque depois disso ainda iria cometer outras insanidades por mais dezenove anos.

Se conto isso é pra dizer que hoje não dou risada desse episódio, porque de fato não teve a menor graça. Mas tudo que venho construindo em sobriedade me permite olhar para esse momento como algo distante, e parte de quem eu sou e de como fui enfrentando essa batalha que é o alcoolismo. O presente ajuda a ressignificar o passado e me faz ficar em paz comigo e com todos. É possível.

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