Vidas Atípicas

Em busca de respostas para dúvidas profundas e inesgotáveis sobre o autismo

Vidas Atípicas - Johanna Nublat
Johanna Nublat
Descrição de chapéu maternidade

'Suporte é central na maternidade atípica', diz influenciadora mãe de uma criança autista

Ex-policial e doutoranda em psicologia é referência para terapias e acolhimento

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Quem entra no perfil @meubebeeoautismo pela primeira vez às sextas-feiras costuma se assustar. Em busca de informações sobre o autismo, acaba se deparando com perguntas e respostas sobre libido, vibradores e outras conversas muito abertas e sinceras sobre sexo e prazer feminino. No fim das tardes das sextas-feiras, Poliana Martins, 35, a Poli, que comanda o perfil com 92,3 mil seguidores, um dos mais influentes sobre maternidade atípica e autismo, deixa de falar diretamente sobre o espectro e foca a atenção nas mães de autistas, como ela.

O que começou como uma brincadeira -- o "butecão" das sextas-feiras -- virou um encontro fixo. "Vejo muito no 'butecão', enquanto um quadro que vai tratar de comportamento sexual, como essas mães são solitárias e, às vezes, estão sozinhas dentro de um casamento em que não existe mais nenhuma relação afetiva, sexual, de amizade, de reciprocidade, sabe?", diz ela em entrevista ao blog.

Poliana Martins abraça e beija seu filho João, um bebê
Poliana Martins e seu filho João, que completa seis anos este mês - Arquivo pessoal/João Paulo de Castro

Advogada e ex-policial civil da periferia de Belo Horizonte, Poli descreve em seu perfil que começou a estudar comportamento humano "por um convite irrecusável da vida, uma vez que gestei e pari meu objeto de pesquisa: João", seu segundo filho, que completa seis anos esse mês. Poli também é mãe da Sophia, 13, e está grávida do Joaquim.

Desde o nascimento do João, ela se tornou mestre e hoje é doutoranda em psicologia e cognição pela UFMG. Seu perfil se tornou referência sobre terapias para autismo, sobre pesquisa e evidência científica, primeiros sinais de autismo em bebês menores de 1 ano de idade e sobre maternidade atípica. Sempre com bom humor, acolhimento e "tretas baseadas em evidência", como ela descreve.

Nessa entrevista para o blog, ela fala sobre sua experiência pessoal, sobre a falta de terapias adequadas para autismo no SUS, sobre a necessidade de suporte para mães de autistas e sobre a invisibilidade das diferenças.

O que mudou sobre sua percepção do autismo desde a suspeita de que o João era autista? Com um mês e quinze dias [de nascido], eu achava já que o João era autista. Desconfiei muito rápido de autismo principalmente pela baixa de contato visual e pelo incômodo permanente, o choro permanente, toda vez que a gente tentava interagir com ele: falar, acarinhar, abraçar. Ele ficava muito agitado e chorava muito. A palavra autismo surgiu por aí. Com um mês e quinze dias, a gente já estava na TO [terapeuta ocupacional] e já estava com essa hipótese de autismo.

O que mudou… tudo. O mais difícil quando a gente tem um filho é não saber o que fazer diante de uma dificuldade, seja ela qual for. A partir do momento em que eu descobri que poderia ajudar meu filho de alguma forma, que existia um caminho, já me senti muito mais em paz. Embora a gente ame muito quando a gente tem filho, e nosso filho nos ame — é uma questão biológica, química —, a comunicação desse amor era muito diferente. Eu não conseguia me comunicar direito com o João.

O que o autismo significou para você naquele momento? Por uma coincidência da vida, eu estava grávida de 32 semanas do João e com uma pessoa na minha família com um processo de depressão muito sério. A gente tinha ido passar férias no sítio e, conversando com uma psicóloga que estava nesse sítio, ela falou assim: "Poli, você acha que essa pessoa pode ser autista?". Eu falei que não, porque, para mim, autismo era outra coisa. Para mim, autismo era carregado desses estereótipos que a gente escuta por aí. Tanto o gênio, quanto o perfil da pessoa que vai ficar na frente da parede fazendo flapping [movimento repetido de balançar as mãos e os braços]. Eu não sabia que uma pessoa autista poderia ter características diversas. Como o familiar tinha características que não correspondiam com o perfil que eu via no mundo — no cinema, na literatura —, eu achava que esse familiar não poderia ser autista. Conhecimento é poder. Eu via o autismo de uma forma muito diferente.

Hoje eu entendo que o autismo está aí com algumas características próprias, mas, ao mesmo tempo, dentro de um espectro de diferenças muito grandes, que a gente não pode colocar numa caixinha. Isso me traz, e me trouxe, muito conforto durante esse processo. Eu entender que eu precisaria conhecer o João. Que era sobre o João, não era necessariamente sobre um diagnóstico. Essa foi a grande mudança para mim.

Por que a gente, entre tantos livros sobre maternidade, não se prepara minimamente para ter uma criança atípica? A gente quer invisibilizar essas diferenças, negar a existência dessas diferenças, porque elas ainda assustam muito. Nossa geração não conviveu com a deficiência. As pessoas com deficiência da nossa geração estavam hospitalizadas ou dentro de casa, elas não estavam nos espaços públicos. A gente não teve acesso à deficiência enquanto uma diversidade natural da espécie humana, que traz algumas dificuldades para a adaptação para o mundo como a gente conhece, mas que a gente precisa resolver. É o mundo que precisa resolver isso, não as pessoas. Mas, como elas não estavam lá, a gente não teve a oportunidade de aprender a partir da diferença. Isso fez com que a gente ficasse com medo da deficiência e, aí, a gente prefere nem olhar para ela. Como se a gente não fosse se sentir tão melhor se todo mundo estivesse preparado.

Como você avalia a oferta de terapias para autismo no SUS? Isso é polêmico. Eu defendo uma saúde pública baseada em evidência. O que seria isso? A gente procurar o que existe de mais seguro, dentro da ciência, de produção científica, para oferecer para as pessoas com autismo dentro do sistema de saúde pública. Isso não acontece. Hoje o SUS não oferece intervenções baseadas em evidência para autismo.

Você quer dizer terapia ABA [sigla em inglês para Análise do Comportamento Aplicada] intensiva? Esse é o padrão ouro. Mas a gente tem, por exemplo, integração sensorial em nível de intensidade um pouco mais alta, TCC (terapia cognitivo-comportamental) que funciona para autistas nível I de suporte que são oralizados, já tendo boas evidências para algumas coisas pontuais como controle de agressividade, TOC, depressão, ansiedade, que são comorbidades comuns do autismo. A gente não tem terapia baseada em evidência no SUS disponível para a populaça geral, não existe. Vai depender do gestor, do secretário de saúde e do governador de cada Estado. De forma geral, essa não vai ser a cultura quando a gente pensa em saúde pública, em saúde mental no Brasil. A cultura não é usar a melhor evidência. Você vai ter, em regra: meia hora por semana de fonoaudióloga e meia hora por semana de psicólogo com abordagens que não são baseadas em evidência. Eu fico extremamente desolada, essa é a palavra, fico devastada. Com essa mudança de governo, a gente tem alguma esperança que isso seja melhor pensado.

O que você percebe, pelo seu perfil no Instagram e o "butecão" das sextas, que são as principais necessidades e desejos de nós que vivemos uma maternidade atípica? Suporte. É a palavra central. As mães precisam de suporte em todos os níveis. De informação: a gente ainda tem pouca informação e vive, hoje, uma era da desinformação. As mães não sabem onde procurar ajudas seguras. Suporte do governo, do SUS, das politicas públicas que garantam acesso à escola, que garantam um mediador escolar para as crianças com deficiência. Mas garantam de fato, não só no discurso. [Suporte para] problemas relacionados a direitos que essas mães têm, mas não sabe que têm. Inclusive [suporte] dos próprios companheiros. Vejo muito no 'butecão', enquanto um quadro que vai tratar de comportamento sexual, como essas mães são solitárias e, às vezes, estão sozinhas dentro de um casamento em que não existe mais nenhuma relação afetiva, sexual, de amizade, de reciprocidade, sabe? Elas se isolaram no cuidado das crianças, muitas vezes abandonaram todos os sonhos para levar adiante o tratamento de um filho, e os pais ainda não se sentem responsáveis por caminhar ao lado dessas mulheres e dessas crianças. 'Eu vou viver minha vida, e você que cuide desse menino, ainda que a gente mantenha esse casamento.' Os níveis de divórcio são altíssimos quando a gente tem crianças com deficiência na família. Quando não divorcia, vemos um abandono muito grande dessa mulher, que deixa de se olhar como mulher. Eu gosto muito do 'butecão', porque traz essa lembrança de 'poxa, eu sou uma pessoa. Além de ser mãe, do cuidado, eu sou uma pessoa, um ser humano, mereço vivências humanas'. É uma desassistência em todos os sentidos. Muitas vezes, da própria família também, que não aceita o diagnóstico, que fala que isso é coisa inventada, que o menino que é pirracento e mal-educado.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.