Vidas Atípicas

Em busca de respostas para dúvidas profundas e inesgotáveis sobre o autismo

Vidas Atípicas - Johanna Nublat
Johanna Nublat

Como uma criança autista vê o amiguinho

Livro infantil troca a perspectiva de quem enxerga a vida cotidiana

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"Quando ele fala com você, o Johnny olha diretamente nos seus olhos, o que pode te deixar bem desconfortável. Mas ele não faz isso por mal. É só o jeito dele, e tudo bem."

"Quando alguma coisa muito legal acontece, o Johnny não reage como você imaginaria. Ele não balança os braços nem pula. Ele só move os cantos da boca para cima e abre um pouco mais os olhos. Talvez ele não saiba muito como expressar as emoções, mas tudo bem."

Johnny é uma criança neurotípica, amiga de um menino autista que narra o livro infantil "Why Johnny doesn’t flap" (que, em tradução livre seria "Por que Johnny não faz flapping", aquele movimento de balançar os braços ou as mãos), de autoria de Clay Morton e Gail Morton, lançado em 2016 e ainda sem tradução para o português.

Na capa de um livro, um garoto encosta no amigo, cada um com seu animal de estimação
Ilustrado por Alex Merry, livro mostra o cotidiano na perspectiva de um garoto autista - Divulgação

A cada página, o narrador vai pontuando como Johnny se comporta de maneira diferente dele: ele chega atrasado, ele faz muito contato visual, ele não segue uma rotina, ele não decora trechos favoritos de desenhos, ele não sabe minúcias de seus temas preferidos, ele não extravasa suas emoções e gasta muito tempo socializando em vez de refletir sobre a vida.

"A gente se diverte muito juntos, mas às vezes ele age de maneira muito estranha. Minha mãe diz que é porque ele é NT, ou neurotípico. Ele não tem autismo, então o cérebro dele funciona de maneira diferente do meu, mas tudo bem", diz o narrador logo no início do livro.

Descobri o livro pelo perfil do Lucas Pontes, 25, autista e agora formado em psicologia. Seguindo a linha do livro, Pontes fez algumas postagens em que também mudava a perspectiva de quem vê as situações cotidianas.

"O funcionamento atípico de uma pessoa autista é sempre visto como um paralelo de um comportamento neurotípico. Vai se criando essa visão a partir daquilo que a gente não faz ou faz de esquisito, em vez de entender como um funcionamento à parte, que é tão válido quanto o típico", diz ao blog Pontes, que também é ativista pela neurodiversidade e editor da Revista Neurodiversidade. "Nós também achamos esquisitas algumas coisas no comportamento típico. E [mudar a perspectiva serve para] tirar esse distanciamento em que nos enxergam com superioridade."

Mudar essa chave pode ser uma forma de empoderamento para os autistas, ao fomentar a consciência de que o neuroatípico não está errado, ele apenas é diferente dos neurotípicos, segundo Pontes. E completa que, por mais que terapias e a aquisição de certas habilidades sejam necessárias, o autista não precisa "se moldar a esse comportamento típico". "A sociedade é que tem que se moldar para acolher nossa forma de comportamento."

Pontes, que recebeu o diagnóstico de autismo aos 20 anos, conta que, durante a vida, se viu na perspectiva do narrador do livro. "No meu primeiro dia de faculdade, entrei na sala e vi todo mundo conversando muito. Saí da sala duas vezes porque achei impossível que as pessoas pudessem estar socializando tanto no primeiro dia aula. Pra mim, eles já estavam no quinto ano da faculdade. Fui fazer amizades lá para o segundo ano", conta ele.

No seu caso, no entanto, havia uma diferença em relação ao narrador: "Mesmo não vendo sentido no comportamento típico, eu tentava me adequar a ele, porque eu ainda não tinha a consciência de que meu funcionamento é ok."

Ao final do livro, os autores colocam uma nota aos pais, que funciona justamente como uma pequena revolução para mudar a perspectiva com que se vê o autismo.

"Crianças neurotípicas não têm a maioria ou todas as características do autismo. Como Johnny, eles são excessivamente flexíveis em sua rotina (se é que eles têm uma rotina) e têm muita necessidade de socializar com outras pessoas (…) Segundo o Centro de Controle e Prevenção de Doenças [o CDC americano], até 67 entre 68 crianças podem ser neurotípicas. Então, se sua criança atualmente não tem um colega NT, ela quase certamente terá um ao longo da vida. E como será quando isso acontecer?"

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