Virada Psicodélica

Novidades da fronteira da pesquisa em saúde mental

Virada Psicodélica - Marcelo Leite
Marcelo Leite

Psicodélico, psicadélico, psiquedélico ou alucinógeno?

Revista Platô eleva patamar do debate sobre drogas ampliadoras da consciência

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São Paulo

"A memória é uma forma de alucinação do passado, assim como a imaginação é uma forma de alucinação do futuro." Esta frase de Henrique Carneiro em artigo para o número especial sobre psicodélicos da revista Platô – Drogas e Política tem a simplicidade das ideias lampejantes, que iluminam coisas fundamentais.

O pesquisador do Laboratório de Estudos Históricos das Drogas e da Alimentação (Lehda-USP) consegue, com 27 palavras, pôr em foco uma característica negligenciada da consciência, que tendemos a conceber em associação com a racionalidade abstrata: seu aspecto visionário, por assim dizer, ou a faculdade de rever experiências passadas --literalmente, com recurso a imagens-- e, com sua ajuda, simular ações futuras.

Foi feliz a escolha dos editores convidados Sandra Lucia Goulart e Luís Fernando Tófoli de abrir com o texto erudito de Carneiro o número especial da publicação da Plataforma Brasileira de Política de Drogas.
Ele assenta as bases mais amplas do papel de visões e drogas no empreendimento humano coletivo, como nas religiões e seus componentes alucinatórios.

Desenho de arte indígena com traços coloridos  mostra cobra e figuras humanas
Detalhe da capa da revista Platô - Reprodução

O autor retoma a origem do termo "psicodélico" ("psychedelic", neologismo cunhado em inglês com raízes gregas, algo como "revelador da mente"), surgido em 1957 na correspondência entre o médico Humphry Osmond e o escritor Aldous Huxley, para assinalar que eles procuraram justamente evitar o elemento "psycho" em favor de "psyche". Seria um modo a contornar o eco indesejável das psicoses propagado pelo primeiro termo e enfatizar o aspecto construtivo, criador, da vida psíquica.

Para Carneiro, portugueses teriam sido mais fiéis ao original traduzindo-o como "psicadélico". Por essa via, melhor mesmo teria sido a palavra "psiquedélico", mas essa viagem não tem volta, melhor seguir em frente e definir uma trajetória que reconduza ao objetivo primeiro, se não na etimologia, ao menos em espírito.

O autor faz isso ao resgatar o aspecto positivo do termo "alucinógeno", recusado por muitos (inclusive neste blog) pelo caráter pejorativo adquirido na guerra às drogas dos anos 1970. Associando LSD, mescalina, psilocibina e até maconha a delírios e surtos psicóticos, o proibicionismo estigmatizou essas substâncias a ponto de varrê-las da pesquisa biomédica, forçando estiagem que durou décadas e só nos anos 2000 foi encerrada com uma torrente de estudos.

Carneiro recua à tipologia de substâncias psicoativas criada pelo farmacólogo alemão Louis Lewin em 1924 para destacar a quinta categoria, que chamou de "fantásticos": "O uso dos fantásticos está intimamente associado a concepções religiosas. Esta associação se explica pelo fato de que as ilusões sensoriais provocadas pelo tóxico são tidas como coisas verdadeiramente existentes pelo sujeito inebriado, e ele as concebe como impressões reais".

"É um estado psíquico que arranca o indivíduo da realidade de todos os dias que lhe faz conhecer coisas novas, inalcançáveis, agradáveis e que por todas essas razões se tornou e permanecerá para ele indispensável".

O historiador parte de Lewin para destacar a íntima a relação entre drogas, alucinação e religião. Alucinações não são necessariamente patológicas, mas buscadas de modo deliberado por meios químicos ou rituais (transes, embriaguez mística, meditação, música e dança), um componente alucinatório das religiões que motivou a preferência de alguns pelo termo "enteógeno" (aquilo que gera deus dentro de si) para substituir "alucinógeno".

Importante é reter o aspecto criativo e, por assim dizer, emancipador das visões, mesmo quando psicodélicos são dissociados do elemento místico, como prefiro. Sem o culto da imaginação haveria arte, utopias, literatura, ciência?

Carneiro vai buscar no médico e escritor Oliver Sacks a medida da centralidade das experiências alucinatórias: "Muitas alucinações parecem ter a criatividade da imaginação, dos sonhos ou da fantasia --ou os vívidos detalhes e a externalidade da percepção. Mas uma alucinação não é nenhuma dessas coisas, embora possa ter alguns mecanismos neurofisiológicos em comum com cada uma delas. Alucinação é uma categoria única e especial da consciência e da vida mental".

Oliver Sacks, autor do livro 'Alucinações Musicais' - BBC News/Getty Images

A edição especial da revista Platô tem vários outros ensaios sobre questões históricas e culturais do uso de psicodélicos, mas cabe destacar o artigo de Fernanda Palhano-Fontes, do Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (ICe-UFRN), que se debruça sobre os mecanismos neurofisiológicos de que fala Sacks. Uma das coordenadoras de pioneiro estudo da UFRN sobre ayahuasca de depressão, a engenheira tornada neurocientista recenseia o que se sabe sobre o efeito terapêutico de psicodélicos e as teorias propostas para explicá-lo.

Relatos subjetivos de vivências psicodélicas são coalhados de visões, dos corriqueiros padrões geométricos coloridos vislumbrados com olhos fechados a complexas alucinações e manifestações oníricas em que não faltam componentes místicos ou sobrenaturais, como experiências extracorpóreas, interação com divindades, espíritos e pessoas mortas. Peculiar ao efeito psicodélico, ainda, é algum senso de irrealidade do conteúdo imaginado, que o distingue do surto psicótico e conteria potencial terapêutico.

Palhano-Fontes mostra como a psicofarmacologia e a neuroimagem dão os primeiros passos, mas decididos, no entendimento do efeito de psicodélicos na cognição, na percepção, na construção do self e das emoções. Após enumerar alterações perceptuais, em que predominam componentes visuais, e afetivas, em geral caracterizadas por intensificação de emoções positivas (euforia, empatia) e raramente negativas (medo, paranoia), a autora relata a ação dessas substâncias em áreas cerebrais como o córtex visual e a amígdala, reduzindo neste caso a resposta a estímulos negativos.

O artigo revisa estudos que se concentram na análise da conectividade entre áreas do cérebro, ou seja, a atividade que se dá envolvendo ativação simultânea de estruturas. Uma dessas redes tem papel destacado no efeito psicodélico, a chamada rede de modo padrão (ou DMN, em inglês "default mode network"), associada com introspecção, reconsideração de vivências anteriores e projeções para vida futura, por exemplo. A DMN sofre uma diminuição de atividade que estaria na origem da ruptura de ruminação de ideias negativas peculiar à depressão e outros transtornos, permitindo a emergência de novos pensamentos e interpretações alternativas para o que causa sofrimento.

Um modelo mais global para explicar o componente terapêutico do efeito psicodélico recorre à noção de que o cérebro tem meios para filtrar o excesso de conteúdos inconscientes e oriundos dos sentidos, permitindo assim que coalesça o estado de consciência ordinária, necessário para o desempenho de funções cotidianas. Psicodélicos, de seu lado, relaxariam esses mecanismos de seleção, facilitando o contato com material reprimido, por assim dizer, e acesso mais caótico a estímulos sensoriais.

É o chamado modelo do cérebro entrópico, desenvolvido por Robin Carhart-Harris, do Imperial College, recém-transferido para a Universidade da Califórnia em São Francisco. O aumento transitório da entropia propiciado por psicodélicos favoreceria efeitos mais duradouros, no que Carhart-Harris batizou de modelo Rebus, do inglês "relaxed beliefs under psychedelics" (crenças relaxadas sob o efeito de psicodélicos).

Em sua base estaria a atualização constante de modelos mentais para explicar o ambiente externo e prever o que vem a seguir. Tal mecanismo, no entanto, pode enrijecer-se e fixar-se em construções mais abstratas --e os psicodélicos viriam ajudar na reabertura para conteúdos perceptuais e atualização de crenças.

Parece significativa, à luz do ensaio de Carneiro, a escolha da palavra "crença" para designar esses modelos preditivos. O que são as religiões, se não sistemas alucinantes (escatalógicos, divinatórios, proféticos) sobre o mundo e seu devir? Mas, assim como os dados da percepção servem para corrigir continuamente os modelos preditivos, a ciência contemporânea assume o papel coletivo de descartar as explicações que se comprovem incompatíveis com o que se pode observar e medir da realidade externa.

Isso, claro, se o que se chama de realidade externa não for substituído pela ruminação cibernética de imagens feitas, ancoradas no passado, desprovidas de valor visionário --os memes. "Hoje, o que ocorre é uma produção sistemática de imagens que, digamos assim, nos perseguem por todas as janelas multimidiáticas que carregamos no bolso ou que estão defronte ao nosso escritório ou em qualquer sala de refeitório, como as televisões, os celulares e as telas de computadores", diagnostica Carneiro.

"Esse tipo de produção imagética consiste também em uma forma alucinatória, mas uma forma alucinatória que tende a se manifestar como uma banalização e como um regime diferenciado da atenção, porque a atenção é, talvez, o mecanismo mais importante do direcionamento da consciência. A produção excessiva de imagens de forma alucinatória seria um elemento fragmentador da atenção."

Existem alucinações e alucinações, portanto. Algumas, como as que parecem predominar hoje no Brasil de Jair Bolsonaro, convergem para o polo da psicose, individual e coletivamente, que atribui a delírios valor de realidade. Psicodélicos pendem para o polo oposto, em que as visões se orientam para um futuro melhor.

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Para saber mais sobre a história e novos desenvolvimentos da ciência nessa área, inclusive no Brasil, procure meu livro "Psiconautas - Viagens com a Ciência Psicodélica Brasileira".

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