Virada Psicodélica

Novidades da fronteira da pesquisa em saúde mental

Virada Psicodélica - Marcelo Leite
Marcelo Leite

LSD ativa pensamento simbólico na criatividade, indica Unicamp

Estudo é o 3º de cientista psicodélica alemã que escolheu pesquisar no Brasil

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São Paulo

Observe os dois pares de desenhos abaixo. Na parte de cima estão duas figuras criadas sob efeito de LSD em experimento da Unicamp, a partir de poucos traços oferecidos para estímulo, como dois vértices, < >, por exemplo. Abaixo aparecem as que o mesmo participante produziu após receber placebo (sem saber o quê, a cada vez).

Uma noção convencional de criatividade, que valorizasse o aspecto estético, talvez indicasse o par inferior como um resultado melhor. Esse juízo estaria em contradição, portanto, com a ideia de que o ácido lisérgico deixa as pessoas mais artísticas.

Dois retângulos com desenhos abstratos coloridos, o primeiro lembrando uma cara de animal, intitulado "O significado do azul", e o segundo com figuras geométricas, bolas e triângulos, intitulado "Semáforo improvável"
Desenhos produzidos por voluntário em estudo da Unicamp com LSD - Reprodução
Dois retângulos contendo desenhos coloridos, o primeiro com cone listrado de laranja e roxo ladeado por filamentos verdes, intitulado "Organismo marinho ainda desconhecido", e o segundo uma série de picos marrons, azuis e verdes, intitulado "Paisagem chinesa com lagos e campos de arroz"
Desenhos produzidos por voluntário de estudo da Unicamp com LSD - Reprodução

Mas tudo ali está certinho, nos desenhos de baixo, literalmente dentro da caixa: traços figurativos, cores referenciais (mesmo na tentativa algo canhestra de inovar com um organismo marinho desconhecido) como água e céu azuis, títulos descritivos e meio óbvios como "Paisagem Chinesa com Lagos e Campos de Arroz".

Na dupla de cima, os desenhos já escapam das quatro linhas. Cores ganham uso arbitrário, o esforço ginasiano cede lugar para a veia cômica, traços pendem para o geométrico, as "descrições" nos títulos guardam relação aberta, ambígua, entre enigmática e irônica, com os gráficos: "O Significado do Azul", "Semáforo Improvável".

Essa é a maior novidade da exaustiva análise da criatividade sob LSD empreendida pelo grupo de Luís Fernando Tófoli na Unicamp: uma derivação para aspectos simbólicos e abstratos do pensamento criativo sob efeito agudo do LSD. Um resultado até certo ponto contra-intuitivo, pois no senso comum a viagem lisérgica costuma ser associada menos com símbolos e abstrações e mais com explosões sensoriais aleatórias, inefáveis, difíceis de pôr em palavras.

O artigo que sai agora no periódico Journal of Psychopharmacology sob o título "LSD e Criatividade" é o terceiro dos quatro que a psicóloga alemã Isabel Wießner escreveu como fruto de sua tese de doutorado, que deve defender em 30 de março. Os dois trabalhos publicados antes foram noticiados aqui (sobre componentes "psicóticos" da viagem lisérgica) e aqui (sobre a janela terapêutica aberta pela droga).

Jovem loira de coque sentada em frente de computador e parede com recortes
Isabel Wiessner, psicóloga alemã que escolheu o Brasil para pesquisar efeitos de substâncias psicodélicas - Arquivo Pessoal/Raphael Egel

Os autores resumem seus achados sobre criatividade e LSD em três linhas gerais: 1) "quebra de padrões", que se reflete em aumento de novidade, surpresa, originalidade e distâncias semânticas; 2) "organização" diminuída, refletida em redução na utilidade, no pensamento convergente e, marginalmente, na elaboração; 3) "significado", com reflexos como pensamento simbólico e ambiguidade incrementados nos resultados obtidos a partir da análise de dados.

O trio de artigos deriva de um mesmo estudo com 24 voluntários saudáveis que participaram de duas sessões experimentais. Num dos encontros, a pessoa recebia 50 microgramas de LSD, e, no outro, uma solução inócua. Wießner e o psiquiatra Marcelo Falchi, presentes na sala com os voluntários por mais de dez horas, também desconheciam se era dia de placebo ou de psicodélico.

Os voluntários respondiam seguidamente a perguntas verbais, marcavam em escalas a intensidade das alterações mentais experimentadas e realizavam testes num computador. Para a análise de componentes da criatividade, empregou-se uma bateria com cinco tipos de testes.

Uma tarefa envolvia propor interpretações criativas para um padrão abstrato de linhas. Outra pedia imaginar usos alternativos para objetos cotidianos --como lápis (coçar a cabeça, tocar bateria, medir uma mesa etc.) ou faca (separar bobagem do que é importante, e assim por diante).

Os participantes também foram solicitados a propor tantas associações inusitadas quanto possível entre dezenas de figuras agrupadas em 17 pranchas sucessivas e a criar uma dezena de metáforas poéticas. Por fim, precisavam fazer desenhos a partir de uns poucos traços simples, dando-lhes títulos criativos (este último exercício foi o que resultou nas figuras acima).

Os escores de cada teste, quando envolviam interpretação, eram dados por dois avaliadores independentes treinados. Comparações estatísticas entre as avaliações indicaram grau entre excelente e moderado de consistência, com raras exceções.

A multiplicidade de testes quantitativos, assim como o controle permitido pelo uso de placebo, pretendeu sanar algumas deficiências presentes em estudos sobre criatividade lisérgica realizados desde as décadas de 1950/60 e permitir comparações com os poucos feitos com maior rigor em anos recentes. Para Wießner, é um dos estudos mais completos e sistemáticos sobre o efeito do LSD na capacidade criativa.

"O mais completo certamente é o estudo de longo prazo de Oscar Janiger nos anos 50/60, que acompanhou repetidas sessões de LSD com mais de mil pessoas durante vários anos, incluindo um grupo de artistas que produziu centenas de desenhos analisados", conta a psicóloga. "Porém, os resultados desse projeto gigante foram reportados principalmente de forma anedótica ou subjetiva, ou tiveram problemas como falta de [controle com] placebo."

Por isso o grupo da Unicamp reuniu uma variedade de técnicas estabelecidas (pensamento divergente, uma medida relacionada, mas não idêntica, à criatividade) e outras baseadas em exploração qualitativa dos dados (avaliando novidade e utilidade, critérios da definição de criatividade) ou em ferramentas contemporâneas de computação (análise semântica da linguagem). Foi com essa variedade de instrumentos que se chegou ao achado sobre o pensamento simbólico.

Wießner chama a atenção, contudo, para um componente importante da criatividade sob LSD: desorganização. A maior flexibilidade de pensamento, que produz associações inesperadas, parece ter como correlato uma capacidade diminuída de avaliar o resultado e trabalhar para aperfeiçoá-lo. Pode ser útil para gerar formas novas, não necessariamente para organizá-las numa obra que permaneça útil e compreensível para os outros.

O caso mais famoso de lampejo útil graças ao LSD foi a invenção do método de amplificação de amostras de DNA conhecido como PCR (reação em cadeia de polimerase, mais conhecida hoje pelo uso nos testes de Covid) por Kary Mullis, que lhe valeu um Prêmio Nobel em 1993. Mas o insight não basta para fazer o processo funcionar, há que desenvolvê-lo e pô-lo em prática agregando os controles e testes comprobatórios.

Homem com camisa xadrez segura modelo de molécula
Kary Mullis, inventor da técnica PCR, cuja ideia teria sido lampejo facilitado pelo uso de LSD - Creative Commons/Erik Charlton

Em outras palavras, a transitória desorganização psíquica propiciada pelo ácido pode ser benéfica para performance criativa, mas não se vai muito longe sem a reconstrução sistemática que só o método pode prover. O que é bom para uma sessão de improviso em música, como uma "jam session", não ajuda muito na hora de estudar música, pondera Wießner.

Psicodélicos como o LSD passam agora por um renascimento para a ciência e a psiquiatria graças a seu potencial uso clínico em transtornos como depressão resistente e estresse pós-traumático. O efeito terapêutico parece estar diretamente associado com essa abertura para a novidade, para romper o excesso de rigidez mental que conduz à ruminação de pensamentos negativos.

Traçando paralelo ousado, fugir da rigidez foi também o que permitiu a Isabel Wießner dar um salto na carreira depois que decidiu se mudar para o Brasil. Casada com o músico alemão Raphael Egel e mãe de um menino hoje com 8 anos, a ex-praticante de esgrima e parapente precisava de uma posição remunerada de pesquisa após o mestrado na Universidade de Jena, sobre hipnose e ondas cerebrais.

Os primeiros convites vieram de Londres e de Praga, mas as vagas não incluíam bolsas de estudo. Já determinada a estudar psicodélicos, recebeu de Tófoli a proposta de doutorado com bolsa no Brasil, cruzando o Atlântico no sentido inverso ao de tantos talentos brasileiros que rumam para a Europa.

Ao tomar a decisão, era quase impensável empreender uma pesquisa sobre LSD na Alemanha (o cenário hoje é outro, já se iniciam testes clínicos por lá depois que a promessa psicoterapêutica foi se tornando palpável). Sua chefe lhe disse em tom de reprovação, quando ainda trabalhava como assistente de pesquisa num grupo de biopsicologia do trabalho centrado nos efeitos do estresse, que ela daria num beco-sem-saída.

Wießner já conhecia o Brasil de viagens anteriores e falava português. Contou que adorava o clima, a natureza e a cultura. Deu-se bem, ainda, com o contraste entre os comportamentos brasileiro e alemão diante de dificuldades:

"Aqui eu experimentei uma flexibilidade enorme. Quando os processos não dão certo, dá para conversar e ajeitar, não só com colegas, mas também com pessoas mais acima na hierarquia e com as instituições de administração --uma coisa impossível na Alemanha".

"O grande problema disso", ressalva a alemã, "é que não dá para confiar em que as coisas serão feitas. Mas, quando usamos essa flexibilidade de um jeito esperto, dá para alcançar coisas extraordinárias, e isso é a mágica do Brasil --quando nos esforçamos do jeito certo, a maravilha acontece."

Desde então, a pesquisa com psicodélicos só fez explodir. Há em andamento mais de uma centena de testes clínicos com psilocibina, MDMA, DMT e LSD. Um deles acontece em Berlim e Mannheim, sobre uso de psilocibina para depressão, com 150 voluntários.

Gráfico mostra evolução da quantidade de testes clínicos com substâncias psicodélicas psilocibina, LSD, DMT e MDMA
Gráfico mostra evolução da quantidade de testes clínicos com substâncias psicodélicas psilocibina, LSD, DMT e MDMA - Reprodução

A vocação da psicóloga, no entanto, está na ciência fundamental, não em ensaios clínicos. "Adoro fazer pesquisa básica, com participantes saudáveis, para olhar do jeito mais neutro e objetivo possível os efeitos dessas substâncias em nossa percepção, nossa cognição e nosso comportamento", enfatiza.

"Acredito que pesquisas desse tipo sejam fundamentais, especialmente agora que ainda estamos no início e sabemos muito pouco. Uma base profunda e sistemática é fundamental para se construir em cima e entender melhor potenciais aplicações na clínica, com grupos vulneráveis."

Diante da reação negativa da chefe ao plano, há poucos anos, Wießner pensou em dizer que a mulher não fazia ideia do que estava acontecendo, mas se calou. "Hoje estamos vendo investimentos e apostas absurdas de empresas que querem ganhar um pedaço do bolo [psicodélico]. Essa área está muito concorrida e extremamente na moda. Sinto que saio em vantagem por já estar avançada com um ‘doutorado em LSD’."

Para saber mais sobre a história e novos desenvolvimentos da ciência nessa área, inclusive no Brasil, procure meu livro "Psiconautas - Viagens com a Ciência Psicodélica Brasileira"

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