Virada Psicodélica

Novidades da fronteira da pesquisa em saúde mental

Virada Psicodélica - Marcelo Leite
Marcelo Leite

Estudo vai investigar ayahuasca para superar luto prolongado

Psicóloga espanhola recruta 216 pessoas enlutadas para teste com chá psicodélico

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

São Paulo

O mundo está de luto. São 6 milhões de mortes só da Covid (655 mil delas no Brasil) --ou 18 milhões ao todo, como estimou pesquisa sobre subnotificação (total provável de mais de 800 mil aqui). Cientistas psicodélicos querem saber se a ayahuasca pode trazer remédio para essa pandemia de tristeza e desamparo.

À frente do estudo se encontra a psicóloga espanhola Débora González, da Beckley Med, entidade ligada à Fundação Beckley de Amanda Feilding. Ela pretende recrutar 216 voluntários que tenham perdido uma pessoa próxima nos 12 meses anteriores e serão distribuídos de modo aleatório em três grupos de 72 participantes.

Cartaz com imagem de dente-de-leão procurando voluntários para estudo com ayahuasca para enfrentar luto
Cartaz procura voluntários para estudo da Beckley Foundation com ayahuasca para enfrentar luto - Reprodução

No primeiro grupo os participantes receberão nove sessões de terapia focalizada no luto. Em paralelo, comparecerão a duas cerimônias de ayahuasca com seus companheiros de estudo.

As pessoas do segundo grupo, de controle, participarão apenas das sessões de terapia. Após as nove semanas de acompanhamento e medidas da intensidade do luto, por meio de escalas padronizadas, aí sim terão chance de estar num ritual com ayahuasca e tomar o chá, se assim desejarem.

Por fim, no terceiro grupo haverá apenas aplicação de questionários e escalas antes e depois das nove semanas, sem psicoterapia. Esses voluntários também terão a oportunidade de presenciar cerimônias com o chá após a coleta de dados.

A proposta decorre de estudos preliminares realizados por González, com número reduzido de portadores do chamado transtorno de luto prolongado (como este de 2020). Cerca de 10% das pessoas que perdem entes queridos não conseguem chegar a uma boa resolução do sofrimento trazido pela morte próxima e têm seu equilíbrio mental profundamente afetado.

Mulher jovem de cabelos negros, blusa branca e colar diante de árvore
Débora González, psicóloga espanhola que investiga ayahuasca para luto prolongado - Reprodução

Débora González, em seu resumo biográfico, conta que passou por algo assim após o suicídio de um amigo próximo. Ela encontrou meios de superar a experiência excruciante também com auxílio de ayahuasca, com a qual conviveu intensamente no Céu do Mapiá, comunidade da religião Santo Daime no estado do Amazonas.

O benefício trazido pela ayahuasca, segundo González, decorre do fato de a morte de uma pessoa próxima inevitavelmente nos confrontar com questões filosóficas e existenciais difíceis de responder.

"A ayahuasca nos ajuda a mergulhar profundamente em nossas memórias e em nossa imaginação coletiva, permitindo que assimilemos informação que fica inacessível durante nosso estado usual de vigília", explica a pesquisadora na apresentação do projeto sobre luto pela Beckley. A informação nova processada na terapia, acredita ela, facilita a reconstrução de sentido numa vida posta de pernas para o ar.

Quem já bebeu ayahuasca entende bem esse potencial. Participando de alguns rituais, mas também após usar psilocibina, com frequência me lembrava com carinho ou me sentia na presença (ainda que sem ter visões) de minha mãe e de meu pai, mortos muito antes, há 25 anos e 14 anos respectivamente.

Para alguém que se ache no auge do luto, então, soa plausível que a experiência lhe seja de fato regeneradora. Numa palestra da Conferência Mundial de Ayahuasca em 2019, González citou o testemunho de um homem sobre o efeito do chá após a morte da mulher. Segundo a descrição, ela apareceu em sua mente, e seu próprio corpo estava virado para baixo, como se a terra o chamasse:

"Aí comecei a sentir que ela se aproximava, como se viesse de muito longe sob a terra [...]. Senti sua presença, sua energia, logo abaixo de mim. Foi como se estivéssemos muito próximos, de frente um para o outro."

Afinal, a aceitação: "Não ouvi palavras nem vi sua imagem, mas podia sentir que ela estava dizendo estar bem, que tinha vindo se despedir de mim. Chorei muito, beijei o chão, disse que a amava muito e a deixei ir. Depois dessa experiência comecei a aceitar sua partida e a entender que ela agora está em outra dimensão."

Além de comovente, o depoimento interessa também porque exemplifica uma derivação comum quando se tenta pôr em palavras ou explicar o efeito emocional marcante de substâncias psicodélicas como a ayahuasca: passa-se rápida e facilmente dos sentimentos vivenciados (aceitação da ausência) para o domínio místico ou sobrenatural ("outra dimensão").

Não seria o caso de fazer reparos quando uma pessoa concreta, menos ainda quando de luto, recorre a esse tipo de explicação para dar conta do que viveu sob o efeito da ayahuasca. Quando se trata de propor e promover seu uso terapêutico, porém, surgem pelo menos dois problemas:

1. Admitir na esfera objetiva da ciência coisas que não se podem medir nem evidenciar;

2. Afastar do benefício potencial de psicodélicos pessoas que sofrem, mas refratárias a esse tipo de explicação, como os céticos, agnósticos e ateus.

González parece encarar tais dificuldades como uma limitação da própria ciência, não da mística que ronda a ayahuasca. Para ela, ao recusar qualquer tipo de crença, a mentalidade ocidental materialista e empírica esmaga a imaginação e não deixa espaço para provar a existência de "espaços sagrados" que possam receber-nos após a morte.

"Como a civilização ocidental recusa essa crença, assume uma outra crença: a de que, quando morremos, não há nada, de que, quando morre o corpo, a consciência se dilui ou desaparece no nada", disse na palestra de 2019.

"Se nos guiarmos pelo método científico, honestamente, teremos de admitir que, enquanto não soubermos a origem da consciência, a morte será um dos grandes mistérios que temos de enfrentar, mais cedo ou mais tarde."

"A ayahuasca nos ajuda a transitar pelo mistério. Não impondo um dogma, ou cosmovisão, mas uma experiência pessoal única e autêntica. A ayahuasca permite que o mistério se apresente em nós, com total liberdade criativa, e cada centímetro de nossas entranhas e corpos sabe como transitar pelos múltiplos territórios da alma, onde tudo está vivo, as montanhas respiram e os mortos confortam os vivos."

-------

Para saber mais sobre a história e novos desenvolvimentos da ciência nessa área, inclusive no Brasil, procure meu livro "Psiconautas - Viagens com a Ciência Psicodélica Brasileira"

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.