Virada Psicodélica

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Virada Psicodélica - Marcelo Leite
Marcelo Leite
Descrição de chapéu Mente LGBTQIA+

Homofobia e antipetismo levam desunião à União do Vegetal

Ação na Justiça contra religião da ayahuasca pressupõe 'lavagem cerebral' com chá da UDV

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São Paulo
Sol, estrela e lua, símbolos da UDV, sobrepostos com imagem de Jair Bolsonaro e vista do Rio de Janeiro
Ilustração de Trey Brasher - Reprodução/Instituto Chacruna

Como revelou o repórter José Marques na Folha, o Centro Espírita Beneficente União do Vegetal (UDV), uma igreja da ayahuasca cujo lema é "luz, paz, amor", está em pé de guerra. O conflito escalou na eleição presidencial e já ameaça ressuscitar o mito da "lavagem cerebral" com emprego do chá psicodélico.

Um pedido de ação popular enviado ao Supremo Tribunal Federal (STF) por Alexandre de Oliveira Rodrigues solicita decisão liminar suspendendo o uso quinzenal do chá em cerimônias da igreja. Rodrigues deixou a UDV há 13 anos.

Na petição de 10 de janeiro, o advogado de Brasília denuncia "possível uso do chá ayahuasca como instrumento de alienação e doutrinação ideológica". Recomenda a suspensão do sacramento para "evitar o uso do chá ayahuasca para formação ideológica de movimentos fanáticos, fundamentalista[s] e contrários ao ordenamento constitucional".

O relator do processo é o ministro Ricardo Lewandowski, que encaminhou o caso para O Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios. Parece pouco provável que o Judiciário acate a proposta de suspender o uso cerimonial da bebida.

"Pedi para proibir em caráter temporário o uso do chá pela UDV para investigar a razão de ter diversos pregadores religiosos apoiando golpe contra a democracia, pois se caracteriza crime incitar golpe contra o regime democrático", disse Rodrigues, quando questionado sobre eventual desproporção entre o proselitismo de alguns dirigentes e a punição abrangendo 22 mil membros da igreja.

"Qual a razão dos pregadores, mesmo cometendo atos contra a democracia, ainda continua[re]m sendo pregadores?" –indaga. "Pessoas que criticaram a permanência dos pregadores [foram] punidas pela religião por faltas espirituais."

Um dos punidos com afastamento foi Agamenon Honório, do Ceará, na UDV há 34 anos. Ele publicou um vídeo apontando incongruência entre o lema da UDV e a rejeição a homossexuais e a defesa de armas por dirigentes, como fez o mestre Raimundo Monteiro em postagens de redes sociais.

Homem de cabelos brancos com legenda "Me. Monteiro"
Reprodução de tela que acompanha áudio do mestre da UDV Raimundo Monteiro - Reprodução

Em resposta por escrito ao repórter José Marques, a UDV ressalvou ser uma religião apartidária e não ter preferido nem indicado candidato à Presidência. Informa ter afastado integrantes da direção por "excessos", mas não diz quais.

Monteiro prega em sua mensagem que homem, mulher e filhos, a família tradicional, são a matriz que permite a evolução humana. O tom homofóbico fica ainda mais evidente em postagem de sua mulher, Zilda Monteiro de Souza, em que ela narra suposto encontro com travesti em banheiro feminino, a poucas semanas do primeiro turno de 2022.

A homofobia implícita na doutrina da UDV combina bem com a fixação bolsonarista no tema, mas não nasceu com ela. Muito antes da tentativa de criar o partido Aliança pelo Brasil por Luis Felipe Belmonte, mestre da UDV e empresário que defende mineração em terra indígena, a condição de homossexual já impedia a progressão na hierarquia da religião.

Há um vídeo revelador sobre o viés homofóbico da UDV em que o psicólogo e neurocientista Daniel Gontijo entrevista Armando Grisi, que foi da UDV. Grisi conta que passou uma década na condição de sócio da igreja, sem poder ascender ao primeiro degrau da organização, o Corpo Instrutivo, por ser casado com outro homem.

Quando se separou do companheiro, acabou convidado para subir de nível. De preferência casando-se com uma mulher. Só homens casados e heterossexuais podem alcançar a condição de mestres, grau máximo da UDV.

A antropóloga brasileira Bia Labate, diretora do Instituto Chacruna em São Francisco (EUA), não chegou a se associar à UDV, mas frequentou reuniões da igreja por duas décadas quando pesquisava o fenômeno social da ayahuasca no Brasil. Ela conta que sempre se sentiu inferiorizada pelo machismo e modelo heterossexual dominantes na UDV, sem reconhecimento adequado da instituição por sua contribuição intelectual e ativista ao campo.

Labate agora se diz "em êxtase" com a discussão interna na UDV, que enfim abriu uma brecha para o debate sobre homofobia. Mas ela afirma considerar triste que um ex-sócio tente entrar com um pedido legal de suspensão do chá na UDV.

"Existe uma visão tanto médica quanto de senso comum de que alucinógenos podem causar sugestionabilidade", ela esclarece. O próprio Chacruna tem publicado muita coisa sobre abuso sexual após uso de psicodélicos, inclusive um guia de orientação para prevenir assédio de terapeutas, guias e xamãs contra clientes sob efeito dessas substâncias.

Dizer que a UDV promove "alienação e doutrinação" por meio da ayahuasca, na sua avaliação, equivale a usar as mesmas categorias que o Estado e o senso comum utilizam para combater o que se chama pejorativamente de "seitas". Elas não seriam religiões legítimas, pretexto para criminalizar "alucinógenos", que não poderiam representar vias autênticas de acesso a conhecimento, práticas milenares entre povos originários e em igrejas que ora enfrentam perseguição na Espanha e na França, por exemplo.

"Embora eu ache lamentável a postura dos mestres bolsonaristas, também acho lamentável essa via legal de tentativa de resolução de um conflito interno. É a reprodução de uma lógica proibicionista e punitivista."

Segundo a antropóloga, a UDV sempre foi muito legalista, buscando a via institucional, formal, até judicial. "Sempre incorporou o discurso do Estado e flertou com interesses dominantes. Sempre teve um certo complexo de superioridade, de se achar diferente, melhor e com mais direitos que as demais religiões ayahuasqueiras", critica.

"É no mínimo irônico. O feitiço está se voltando contra o feiticeiro."

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AVISO AOS NAVEGANTES - Psicodélicos ainda são terapias experimentais e, certamente, não constituem panaceia para todos os transtornos psíquicos, nem devem ser objeto de automedicação. Fale com seu terapeuta ou médico antes de se aventurar na área.

Para saber mais sobre a história e novos desenvolvimentos da ciência nessa área, inclusive no Brasil, procure meu livro "Psiconautas - Viagens com a Ciência Psicodélica Brasileira".

Sobre a tendência de legalização do uso terapêutico e adulto de psicodélicos nos EUA, veja a reportagem "Cogumelos Livres" na edição de dezembro de 2022 na revista Piauí.

Não deixe de ver também na Folha as reportagens da série "A Ressurreição da Jurema":

https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2022/07/reporter-conta-experiencia-de-inalar-dmt-psicodelico-em-teste-contra-depressao.shtml

https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2022/07/da-caatinga-ao-laboratorio-cientistas-investigam-efeito-antidepressivo-de-psicodelico.shtml

https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2022/07/cultos-com-alucinogeno-da-jurema-florescem-no-nordeste.shtml

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