Cultos com alucinógeno da jurema florescem no Nordeste

Rituais indígenas centrados na planta, próximos de umbanda e candomblé, resistem à repressão e ganham adeptos

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Obra de Rodolpho Parigi Divulgação

Marcelo Leite

Colunista da Folha e autor de livros como “Promessas do Genoma” (Editora Unesp, 2007) e “Psiconautas – Viagens com a Ciência Psicodélica Brasileira” (Fósforo, 2021)

[RESUMO] A religiosidade centrada na jurema, planta da caatinga que contém o psicodélico DMT, resistiu à intolerância e à perseguição estatal e hoje é revalorizada por indígenas e pelo misticismo urbano. Autor relata sua participação em rituais, que revelam a combinação da origem indígena com influências africanas e o catolicismo popular que caracteriza as cerimônias. Esta é a terceira reportagem da série A ressureição da jurema.

A mestra juremeira Ritinha, havia pouco incorporada no dono da casa, André Luiz do Nascimento, 50, se aproxima do jornalista deitado na esteira verde de ioga. De pé, estende as mãos sobre o corpo estirado como se tateasse uma parede invisível.

Após alguns minutos se ajoelha e pede licença para "fazer uma cura". Com juízo e ceticismo desligados após o segundo despacho (dose) dos chás de jurema-preta (Mimosa tenuiflora) e arruda-da-síria (Peganum harmala), o repórter concorda.

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Ritual da Lua Cheia em Baía da Traição (PB), na Terra Indígena Potiguara - Claudia Kober/Folhapress

Ritinha percorre-lhe o peito com as mãos, detém-se sobre o pulmão direito, e elas começam a tremer. A encantada se abaixa e encosta a boca na camiseta, assoprando ou sugando o ar —é difícil precisar.

As mãos voltam a vagar, detendo-se a seguir sobre o baixo-ventre. Novo tremor, mais intenso. A sensação, entre intrigante e divertida, é de conforto, cuidado, quase um afago. Novo sopro ou sugação.

Ritinha se crispa e exige, aos brados, que lhe alcancem uma vela branca. Esfrega a parafina com vigor na barriga do jornalista, depois quebra o bastão em quatro pedaços, que permanecem unidos pelo pavio, e joga longe.

Levanta-se, sem dizer palavra, e retoma a caminhada pela sala com o chapéu branco de aba larga enfeitado por lenço colorido. De quando em quando, gargalha.

Pelo menos outras três pessoas entram em estado mediúnico durante a cerimônia de catimbó, incorporando mestres e caboclos da jurema. A casa térrea de André Luiz fica na Redinha, bairro periférico de Natal (RN).

O transe mais duradouro toma o oficiante, Rômulo Henrique Pereira Angélico, 41. Ele recebe seu mestre-guia Manoel Germano, que dispensa ensinamentos entre uma e outra linha (cânticos) entoadas com voz potente de baixo.

Um dos pontos invoca Exu, entidade da umbanda com que usualmente se abre uma mesa de jurema. Das 22h às 5h, os cantos percorrem amplo espectro sincrético, de caboclos como Pena Branca e Jurema a Nossa Senhora e São Francisco.

Germano, incorporado, faz o corpo de Rômulo claudicar pela sala. Às vezes de chapéu preto na cabeça e cachimbo na boca, falando com sotaque acaipirado.

Há uma dúzia de pessoas na casa, além dos mestres Rômulo e Breno Gabriel no comando da cerimônia. De novatos no catimbó e na jurema, só o jornalista e duas moças argentinas.

Enquanto esperam a chegada de Sydma, mulher de Rômulo, ambos esclarecem os estreantes sobre o efeito combinado das duas beberagens. As consagrações aconteceriam por três vezes durante a noite, e cada um tomaria só quando quisesse.

Poderiam ter visões, exemplificam, vomitar e até experimentar a sensação de morrer, mas tudo passaria a seu tempo, e a limpeza seria benéfica para todos. Segue-se uma rodada de "anamnese", em que cada pessoa pode dizer o que a aflige ou qual seu propósito ali.

Mestre Breno soa mais tranquilizador, papel que desempenha durante as sete horas da sessão. Encanta-se com o título do livro do jornalista, "Psiconautas" (Fósforo) e diz que a navegação chegaria a bom porto naquele dia. "O barco tem dono, André Luiz, capitão, Rômulo, e contramestre" —o próprio Breno.

Ele traja um gorro de penas azuis com uma maior, amarela, se destacando no alto, e uma canga nos ombros com estampa de penas de pavão, simbolizando para ele um manto sagrado tupinambá. Pita jurema em um vaporizador, espalhando fumaça de odor adocicado, e na mão traz uma espécie de borduna.

Iriam viajar por um mar de ideias e pescar, ensina o mestre, com todos retornando seguros à terra firme. Entoa a canção "Suíte do Pescador" de Dorival Caymmi:

"Minha jangada vai sair pro mar/ Vou trabalhar, meu bem querer/ Se Deus quiser quando eu voltar do mar/ Um peixe bom eu vou trazer/ Meus companheiros também vão voltar/ E a Deus do céu vamos agradecer".

A consagração de dois chás é inovação neoxamânica em cerimônias urbanas que reivindicam raízes no catimbó. Os rituais indígenas empregam o chamado vinho, à base de jurema-preta, algum tipo de álcool e mel, além de outros ingredientes e ervas mantidos em segredo, mas que não necessariamente exercem impacto psicodélico.

No caso da noite na Redinha, os chás servidos se encaixam no conceito de "juremahuasca". Esse é o apelido da mistura de jurema com arruda-da-síria que reproduz a mágica do chá usado em religiões como Santo Daime, Barquinha e União do Vegetal.

A ayahuasca resulta da longa fervura de duas plantas, o arbusto chacrona (Psychotria viridis) e o cipó mariri, ou jagube (Banisteriopsis caapi). Na juremahuasca, usa-se a jurema em lugar da chacrona como fonte de DMT (dimetiltriptamina), substância propriamente alteradora da consciência.

A arruda-da-síria faz as vezes do mariri: fornecer betacarbolinas, compostos capazes de inibir uma enzima (monoaminaoxidase, MAO) que, de outra maneira, degradaria a DMT no trato digestivo, impedindo sua chegada à corrente sanguínea e ao cérebro.

A arruda-da-síria, como o nome indica, nem mesmo é nativa do Brasil. Cresce nas regiões desérticas em torno do Mediterrâneo. Pode ser comprada pela internet, no entanto, como fazem neoxamãs juremeiros.

O chá amarronzado feito por mestre Breno, de sabor vegetal peculiar, é tomado por volta de meia hora antes da jurema. A segunda bebida é negra e muito amarga, e seu feitio coube a mestre Rômulo.

O efeito combinado pode ser descrito como muito semelhante ao da ayahuasca, em que a DMT já vem misturada com inibidores de MAO, e ao mesmo tempo muito diferente. Mesmo com a ingestão só da bebida com arruda-da-síria já dá para sentir um tremor interno.

A planta mediterrânea contém os alcaloides harmina e harmalina, batizados a partir do nome científico Peganum harmala. Eles também atuam como ansiolíticos, baixam a pressão arterial e aumentam a frequência cardíaca.

As primeiras manifestações após beber a jurema são visuais e mais luminosas que as de ayahuasca, na experiência do jornalista: de olhos fechados, surgem pontilhados faiscantes e manchas coloridas, mas que não preenchem todo o espaço visual, como fariam se aparecessem em um caleidoscópio.

Logo elas evoluem para imagens mais tridimensionais, "arquitetônicas", como palácios de vidro negro e pontos de luz. A parte intensamente visual não dura muito.

Para favorecer a introspecção, Rômulo toca em uma caixinha de som conectada ao laptop músicas meio eletrônicas do campo esotérico (andina, indiana, ameríndias e cristãs). Mesmo tentando dirigir a atenção para figuras masculinas, como irmão ou pai, vêm apenas mulheres à tela da mente.

Havia tocado a "Oração de São Francisco" e, talvez por isso, o tema predominante torna-se o perdão. Ocorre um pedido silencioso de desculpas para uma ex-namorada, por falta de empenho em produzir uma reportagem que talvez a ajudasse na inclusão em um grupo de tratamento experimental para câncer.

Esse é o momento de maior emoção, ainda que não carregado de culpa. Mais um lamento doído e sereno por não lhe dar o amparo que em nada teria alterado o curso da enfermidade, mas que decerto ela teria apreciado.

Em 2005, dando aulas em uma escola pública do litoral sul do Rio Grande do Norte, o professor de história Rômulo pouco sabia de catimbó ou jurema. Mal as diferenciava de candomblé ou umbanda.

A rede local de ensino organizou uma feira de ciências com o tema Religião em Canguaretama, e só apareciam temas cristãos. O futuro mestre propôs cultos de raiz africana, e meros 14 de 2.600 alunos se interessaram.

A partir daí, aprofundou-se no estudo da religiosidade do Nordeste, que o levou a ler os trabalhos sobre catimbó de Câmara Cascudo e Mário de Andrade. Também começou a visitar comunidades indígenas e terreiros.

Entrevistava catimbozeiros e tomava notas. Em uma dessas conversas, sentiu o que chama de "pré-mediunização", entendendo-a como um chamado para iniciação.

A partir de 2009, aprendeu com pajés, mestres juremeiros (entre eles Breno e Maria Fernandes) e da umbanda (Francisca Bezerra Honorato, a mestra Neta do terreiro de umbanda Ogum-Odé) a preparar a jurema com água, mel e variedades silvestres de caju e maracujá.

Em 2013, abriu seu próprio terreiro, o Centro Espiritualista Casa do Sol Nascente do Rei Malunguinho. O terreiro terminou fechando após um episódio de vandalismo, em que objetos de culto foram quebrados e animais de estimação, mortos. "Não faço sacrifícios", esclarece Rômulo.

No momento, ele trabalha para abrir um novo espaço de catimbó, o Centro Espiritualista e Beneficente Mestre Manoel Germano. A cerimônia na Redinha fazia parte do esforço de levantamento de fundos.

"A jurema é muita coisa: vários reinos, a bebida, a planta, a cabocla —um mundo", explica o mestre. Cada reino encantado é governado por um rei, e, em suas cidades, residem mestras e mestres recebidos nos rituais, como o Manoel Germano incorporado por Rômulo. "O chá favorece a comunicação com esses seres."

São chamados de mestres tanto os vivos quanto os falecidos. Após a morte neste mundo, eles vivem encantados em cidades e reinos específicos, de onde são invocados nos pontos cantados para que venham ajudar nos trabalhos.

Têm personalidade própria, são "ancestrais divinizados, homens e mulheres que caminharam aqui na Terra", segundo Rômulo: Maria do Acais, Zé Pilintra, Caboclo Pena Branca, e assim por diante.

"Outros são animais ou espíritos de plantas", explica o catimbozeiro. "Não pode ser algo imaginário, apenas, quando se manifesta em curas reais, em recados [conselhos] que se realizam."

Série A ressurreição da jurema

Marcelo Leite apresenta a pesquisa da UFRN sobre o efeito antidepressivo da DMT, encontrada na jurema-preta, e os rituais religiosos do Nordeste que empregam a substância

  1. Repórter conta experiência de inalar DMT

  2. Cientistas investigam efeito antidepressivo de psicodélico

  3. Cultos com alucinógeno da jurema florescem no Nordeste

"Quem sou eu para dizer que sereias não existem?" A pergunta retórica aflorou em entrevista no Rio de Janeiro com o antropólogo Rodrigo de Azeredo Grünewald, professor da UFCG (Universidade Federal de Campina Grande) e autor do livro "Jurema" (Mercado de Letras).

"Quem só pensa em moléculas acha que [praticantes de jurema] estão inventando contos de fadas."

A jurema entrou na vida de Grünewald em janeiro de 1990, quando iniciava seu trabalho etnográfico com o povo atikum, um dos vários que usam a bebida no sertão nordestino, domínio da caatinga onde viceja a árvore pioneira Mimosa tenuiflora.

Com passagem pela Barquinha, o carioca não era um estranho entre psicodélicos quando se rendeu aos encantos da jurema. Passou a realizar rituais de juremahuasca para amigos em seu sítio de Jacarepaguá, a partir de janeiro de 1997. "A jurema é o cosmos em um copinho."

Hoje, o antropólogo quase não toma a beberagem, da qual se distanciou a partir de 2005. É mais afeito aos rituais que observou e dos quais participou, com os indígenas do Nordeste, do que ao efeito psicodélico da planta, pois suas experiências nesses rituais lhe são mais preenchedoras.

Além disso, o uso da jurema estaria na raiz da sustentação de tradições que estuda e que a cultura dominante reprime desde os tempos da Inquisição. Combate vão. A jurema persistiu no imaginário brasileiro, ainda que subterrânea.

No clássico "Iracema" (1865), de José de Alencar, que gerações de estudantes brasileiros leram para exames de entrada na universidade, o vinho da raiz é citado nesta passagem:

"Quando foram todos sentados em torno do grande fogo, o ministro de Tupã ordena o silêncio com um gesto, e três vezes chamando o nome terrível, enche-se do deus que o habita:

— Tupã!... Tupã!... Tupã!...

De grota em grota o eco ao longe repercutiu.

Vem Iracema com a iaçaba [pote de barro] cheia do verde licor.

Araquém decreta os sonhos a cada guerreiro e distribui o vinho da jurema, que transporta ao céu o valente tabajara. [...]

Todos sentem a felicidade tão viva e contínua, que no espaço da noite cuidam viver muitas luas. As bocas murmuram; o gesto fala; e o Pajé, que tudo escuta e vê, colhe o segredo no íntimo d’alma."

Quem, entretanto, se lembra de Alencar? Ou para e pensa em versos como "A ema gemeu/ No tronco do juremá", popularizados na voz de Jackson do Pandeiro e Gilberto Gil? Ou, ainda, quando Chico Buarque canta em "A Violeira" que "Ver Ipanema/ Foi que nem tomar jurema/ Que cenário de cinema"?

No Nordeste, segundo Grünewald, as tradições juremeiras sobreviveram a cultura dominante, colonialismo interno, imperialismo cultural e religioso. Fincaram raízes profundas o bastante para levar a seiva até neoxamãs que, como Rômulo, abraçam o tronco da jurema.

O antropólogo escreveu em seu livro: "Na pós-modernidade, alguns novos sujeitos promovem, com seu experimentalismo místico com a jurema, uma crítica a essa assimetria, tentando barrar em alguma medida a arrogância da ciência médica e da modernidade como um todo, cuja razão não permite ao indivíduo escutar o mundo (cosmos) mais amplo".

Com as múltiplas manifestações, figuras e formas dessa religiosidade centrada na árvore da caatinga, Grünewald prefere falar em "complexo da jurema". Originada entre índios do sertão, ela sofreu um processo de desetnização.

Grupos indígenas e negros do litoral se embrenharam na caatinga fugindo da escravização. Depois, retornaram à costa com feições mais caboclas, miscigenadas —o catimbó. A repressão e a estigmatização dos cultos, no entanto, prosseguiram.

"A jurema é mestiça", vaticina o antropólogo. Em seu modo de ver, essa seria a razão para a planta só mais recentemente cair nas graças do misticismo urbano (embora sempre tenha estado presente, simbólica ou fisicamente, nos terreiros e salas do Nordeste onde era praticada às escondidas). Mesmo assim, de forma localizada, com baixa penetração no Sudeste, por exemplo.

Antes, se expandiram pelas grandes cidades do Brasil as religiões da ayahuasca. Elas iam embaladas por visões de matas virgens exuberantes e índios arquetípicos, puros, que andavam nus na selva.

Isso apesar de serem elas mesmas manifestações sincréticas, nas quais se mesclam mitos indígenas com o catolicismo de caboclos ribeirinhos e seringueiros. Muitos deles, aliás, migrantes do mesmo Nordeste.

O antropólogo Luiz Assunção, professor da UFRN (Universidade Federal do Rio Grande do Norte), também enxerga na pluralidade a marca da jurema. É uma herança indígena que se misturou com influências africanas e catolicismo popular.

A religião oficial, no entanto, sempre condenou o catimbó como feitiçaria e culto demoníaco. Foi a semente da perseguição policial contra seus praticantes e os da umbanda.

O antropólogo Luiz Assunção, professor da UFRN (Universidade Federal do Rio Grande do Norte)
O antropólogo Luiz Assunção, professor da UFRN (Universidade Federal do Rio Grande do Norte) - Claudia Kober e Marcelo Leite/Folhapress

"A jurema sempre existiu como prática ritualística, foi passando, passando, e chegou às populações urbanas, mas a intolerância fez com que se fechasse como prática de pequenos grupos em torno de um mestre vivo, em consultas individuais", diz o antropólogo potiguar, autor do livro "O Reino dos Mestres: a Tradição da Jurema na Umbanda Nordestina" (Pallas).

Para Assunção, a sobrevivência da jurema teve a ver com o descaso do Estado perante os pobres das cidades nordestinas. Sem acesso adequado a serviços de saúde, eles recorriam a consultas com os mestres, grandes conhecedores de plantas medicinais, e a seus "recados" mediúnicos.

"Existe um processo político em torno de lideranças religiosas, que ganha forma nos encontros de juremeiros realizados em alguns estados nordestinos, que remete à construção de pertencimentos a partir da valorização de signos da tradição indígena."

A associação com a umbanda ganhou força institucional nos anos 1960, quando começaram a surgir as federações nordestinas dessa outra religião sincrética originária do Rio de Janeiro, na qual entram orixás africanos, catolicismo e kardecismo.

Catimbozeiros e juremeiros se abrigaram nas federações, nas quais viam uma promessa de proteção contra a repressão. Abrigo que, afinal, não se concretizou –até hoje os terreiros sofrem ataques, como ocorreu com o de mestre Rômulo.

Nesse processo, a jurema ficou em posição subalterna, como um apêndice das casas de umbanda. O preconceito social continuou forte. "Ainda hoje, a classe média não vai à jurema", diz Assunção; quando muito, intelectuais se sentem atraídos pelo candomblé e sua imagem de maior pureza africana.

Há um movimento de revalorização do catimbó no meio urbano, contudo, em iniciativas como a de Rômulo Angélico, e até mesmo um fluxo recente de catimbozeiros de Natal para São Paulo. Mas não é só nas capitais nordestinas que suas práticas estão ressuscitando.

O pajé Isaias Marculino da Silva, 34, o Guarapirá, chega já pintado à Matinha do Pau-Ferro, ilha de árvores no mar de cana-de-açúcar em volta da Terra Indígena Potiguara em Baía da Traição, na Paraíba. No porta-malas do carro vão bombos (tambores), cachimbos, garrafão de jurema, cocar de penas e saiote de fibras de embira.

Naquele 16 de maio, realizava-se mais um Ritual da Lua Cheia, que se repete a cada mês desde 2013. Isaias discursa para cerca de 30 participantes e explica que o homenageado da noite é pajé Chico, o mais velho da região, morto dias antes aos 76 anos.

A mesa de jurema está posta no chão, com velas acesas, a bebida cerimonial, cachimbos (um deles com várias piteiras), prato de cerâmica com tabaco, maracás. À direita, um grupo de senhoras vestidas de embira se acomoda em cadeiras de plásticos. Um dos filhos de Isaias, Iakarynauê, 10, também enverga saiote.

Chega a van da UFPB com estudantes trazidos por Lusival Antonio Barcellos, professor de ciências da religião. No grupo está Surama Santos Ismael da Costa, matemática que três semanas depois defenderia sobre esse mesmo ritual uma tese de doutorado, na UFPB, com supervisão de Barcellos (que também orienta o mestrado de Isaias).

Surama explica que a alocução incompreensível para o jornalista é um Pai-Nosso em tupi-guarani:

"Oré rub, ybákype tekoar

I moetepýramo nde rera t’oîkó

T’our nde Reino!

T’onhemonhang nde remimotara ybype

Ybákype i nhemonhanga îabé!

Oré remi’u, ‘ara îabi’ondûara, eîme’eng kori orébe.

Nde nhyró oré angaîpaba resé orébe, oré rerekomemûãsara supé oré nhyrõ iabé.

Oré mo’arukar ume îepé tentação pupé, oré pysyrõte îepé mba’ea’iba suí."

Acesa a fogueira, o ritual se abre com a gaita, espécie de flauta com cabaça. O canto de abertura é iniciado pelo pajé, e as estrofes são em seguida repetidas pelos demais. "Quem pintou a louça fina/ Foi a Flor da Maravilha/ Pai e Filho e Espírito Santo/ Filho da Virgem Maria", reza uma delas.

Serve-se a bebida feito por Isaias com jurema-branca (talvez Mimosa verrucosa), água fria, vinho, mel e folhas, cascas, raízes ou sementes de plantas que não revela. Cada visitante recebe meio copo descartável de plástico de 200 ml, imposição da pandemia (antes se usava a mesma cumbuca para todos). Apenas o pajé, os mais velhos e os iniciados tomam a bebida várias vezes ao longo da cerimônia.

O sabor é vegetal, doce e alcoólico, lembra licor de jenipapo. Efeito psicodélico zero, como havia alertado o pajé. "Não tem alucinógeno, mas tem energia", assegura Isaias. "É um portal de permissão para a espiritualidade. Depende de você."

Na tese resultante de quatro anos envolvida com o ritual, Surama descreve o efeito da bebida sobre ela:

"Depois da terceira cuia de Jurema, a paz reinou dentro de mim. Ele [Isaias] se curvou aos meus pés e começou o ritual de defumação. Tive medo de me sentir mal com a fumaça, mas, para minha surpresa, à medida que o caboclo soprava seu cachimbo, encostando a boca na abertura do forno, no lado oposto ao que se costuma fumar, sua fumaça aguçava os meus sentidos enquanto cobria meu corpo".

"Senti um cheiro maravilhoso das ervas sendo queimadas, senti o som do maracá mais intenso e limpo, e senti, ainda mais, o gosto doce da Jurema em minha boca. Fiquei com o corpo trêmulo. Sem forças nas pernas, caí de joelhos ao chão. Nesse momento, tive uma explosão no coração, que o fez bater num ritmo acelerado, incompatível com a calmaria que habitava em mim."

A cerimônia segue com várias linhas entoadas até 22h, a invocar Jurema, outros caboclos vários e Oxóssi. "Chamo as cabocas de pena, eu chamei ela pra vim nos ajudar/ Cadê a força da Jurema, cadê a força que a Jurema dá/ Oh caboca de pena, oh caboca de pena, tem pena de mim, tem dó".

Alguns participantes dançam em círculo em torno da mesa, no sentido anti-horário, batendo os pés descalços no chão, alguns marcando o ritmo com maracás.

Além de Isaias e um dos anciãos, três mulheres negras entram em transe e recebem encantados. Dobradas sobre si mesmas, uma mão na testa e outra nas costas, soltam grunhidos e sons que se parecem com vocalizações animais. A lua brilha entre as folhas de paus-ferro.

Mais para o final, uma das senhoras sentadas convida quem quiser se consultar com o Caboclo das Matas Sagradas incorporado por Guarapirá. Longa fila se forma.

Uma a uma, as pessoas se ajoelham diante do encantado. O caboclo lhes transmite mensagens em voz inaudível, toca seus ombros, cabeça ou peito, envolvendo-os em fumaça copiosa saindo da piteira do cachimbo soprado pelo fornilho.

Fechada a mesa de jurema, de novo após um toque de gaita, todos entoam: "O caboco da aldeia quando vai para o mar pescar/ Dos cabelos faz o fio, do fio faz landuá/ Os cabocos na aldeia sessando a areia" (landuá é uma rede de mão afunilada para pegar peixes pequenos, como o puçá, e sessar significa peneirar).

Segue então a comitiva para a casa do pajé na aldeia Lagoa do Mato. Uma ceia de tapioca, arroz e peixe é servida em cumbucas de plástico, numa atmosfera de alegria e comunhão.

Partilham a refeição dois policiais militares da Patrulha Indígena paraibana. O destacamento foi criado, alega-se, para dar segurança a 32 aldeias de potiguaras nas cidades de Baía da Traição, Rio Tinto e Marcação.

Nem sempre foi assim. A polícia dos brancos, antes e depois do reconhecimento da etnia a partir de 1930, sempre esteve mais do lado de usineiros invasores de suas terras.

Rituais foram reprimidos ou proibidos pelos catequizadores e administradores portugueses no período colonial, a língua, erradicada, e seus pajés, condenados pela Inquisição como feiticeiros. Assim se firmou o preconceito ainda hoje disseminado.

No século 20, a burocracia indigenista (SPI, o Serviço de Proteção aos Índios do marechal Cândido Rondon, e a Funai a partir de 1967) passou a considerar rituais como o toré, com ou sem uso da jurema, como sinal patente de "indianidade".

Era um dos pré-requisitos para formalização de territórios. A ressurreição das cerimônias ocupou o epicentro do movimento de etnogênese no Nordeste, ressurgência de povos indígenas que tinham perdido seus costumes.

Isaias ouviu esse chamado num sonho. Estava debaixo de uma árvore que lhe parecia uma caverna.

Viu caciques do passado e do presente, tristes com a espiritualidade fraca dos potiguaras. O Caboclo da Mata Virgem e a Cabocla de Oxóssi da Jurema o convocavam a "buscar a força dos encantados para levantar a força dos encantados".

O futuro Guarapirá dedicou-se então a estudar, em duas frentes. Com pajés mais velhos, como o falecido Chico, aprendeu a ciência da jurema —como preparar o vinho, onde encontrar e como usar plantas de poder, a força dos cachimbos, bombos e maracás.

Na universidade, formou-se em pedagogia. Estudou tupi antigo para dar aulas da língua e agora faz mestrado em ciências da religião na UFPB.

O professor dirige a escola municipal Celina Freire Rodrigues, na vizinha aldeia de Cumaru, que tem cerca de 80 alunos do ensino fundamental. Ensina tupi na escola estadual indígena de ensino fundamental e médio Angelita Bezerra, aldeia Silva de Belém, município de Rio Tinto, que tem duas centenas de estudantes.

"O ritual espiritual tem de continuar", diz, recusando, porém, a qualificação de catimbó jurema. "É um ritual potiguara, fruto dessa miscigenação. Reverenciamos algumas entidades, há cânticos com nomes de santos, mas é ritual nosso, de fortalecimento."

A sessão de catimbó jurema em Natal, no bairro da Redinha, termina por volta das 5h da manhã com relatos sobre as experiências vividas, cada um segurando a borduna trazida por mestre Breno. Alguns se emocionam ao falar de tristezas e traumas.

Chega a hora de alimentar-se, após o longo jejum, com uma miscelânea de petiscos --castanhas de caju, chips de batata, minicoxinhas, pães e bolo-- trazidos pelos visitantes. Desincorporado da mestra Ritinha, André Luiz, enfermeiro e terapeuta integrativo, pede para conversar com o jornalista.

Diz que sentiu um campo forte em torno do visitante, como uma barreira de defesa. Quando conseguiu ultrapassá-lo, percebeu primeiro um foco no pulmão, "que para a medicina chinesa é o local da tristeza".

Acrescenta, contudo, que o maior problema estava na barriga: "Algo muito escuro, um nó de sujeiras". Pergunta se o jornalista relaciona isso com alguma questão de saúde. Uma cirurgia de próstata vem à baila, ao que o médium reage com: "Ah, é isso então!".

A operação, porém, ocorrera quase três anos antes, e os exames desde então indicam remissão completa. O repórter ensaia dizer que todo mundo tem algum problema no abdome (diarreia, cólica, enjoo, azia, gases, problema de fígado, vesícula, estômago...), mas se contém.

"Sua cura não foi há três anos. Foi hoje", rebate o dono da casa. "A partir daqui coisas acontecerão na sua vida."

Três semanas depois, já em São Paulo, o cético acorda às 4h23 com dores no ventre, que vão crescendo até o ponto de levá-lo ao hospital —pedras no rim esquerdo. Nem sob efeito de morfina ele se convence dos poderes de mestra Ritinha, mas lhe agradece, e à jurema, pelo gesto de cuidado.

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