Virada Psicodélica

Novidades da fronteira da pesquisa em saúde mental

Virada Psicodélica - Marcelo Leite
Marcelo Leite
Descrição de chapéu Mente genética

Genética tenta desvendar mistério do cipó da ayahuasca

DNA confirma linhagens reconhecidas pela tradição que podem ser espécies distintas

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Detalhe de gomos de cipó grosso
Variedade tucunacá do cipó-mariri (Banisteriopsis caapi) usado para fazer ayahuasca - Arquivo pessoal/Antonio Saulo

Sem o cipó-mariri, Banisteriopsis caapi, não existiria o chá psicodélico ayahuasca. Também conhecida como daime e hoasca, a bebida resulta de sua cocção com as folhas do arbusto chacrona (Psychotria viridis). O nome científico indica uma espécie única de cipó, mas estudos genéticos sugerem que pode haver mais de uma.

Certo é que todas as variedades do mariri fornecem o inibidor de monoaminaoxidase (MAO), enzima que impede o efeito da chacrona ao degradar no trato digestivo a substância psicodélica dimetiltriptamina (DMT). Com o inibidor do cipó ingerido ao mesmo tempo, a DMT chega à corrente sanguínea e ao cérebro, produzindo as "mirações" características da ayahuasca.

A União do Vegetal (UDV) é uma das principais religiões ayahuasqueiras, ao lado do Santo Daime e da Barquinha. Seus membros reconhecem e cultivam pelo menos três linhagens, ou etnovariedades, do mariri: tucunacá, caupuri e pajezinho. Esse conhecimento tradicional foi corroborado agora pela análise de marcadores de DNA, como noticiou o blog UDV Ciência.

A confirmação surgiu com a pesquisa de mestrado da agrônoma Thalita Zanquetta Luz no Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa). O primeiro capítulo de sua dissertação saiu em dezembro no periódico especializado Genetic Resources and Crop Evolution, no artigo "First DNA barcode efficiency assessment for an important ingredient in the Amazonian ayahuasca tea: mariri/jagube, Banisteriopsis (Malpighiaceae)".

O longo título nada tem de convidativo para leigos, decerto, mas quer dizer algo como: primeira avaliação da eficiência de código de barras genético para identificar variedades de mariri, ou jagube (outro nome do cipó, também chamado de iagê/yagé). Código de barras, no caso, é uma metáfora para sequências marcadoras de DNA que permitem distinguir um organismo de outro.

Luz, aos 33 anos, é a mais jovem dos autores do artigo. Ela recebeu a sugestão de tema de mestrado de Antonio Saulo Cunha-Machado, geneticista de plantas e membro da UDV em Manaus. Ele tencionava investigar o mariri em seus próprios mestrado e doutorado, mas não conseguiu viabilizar a tempo os recursos necessários para o plano traçado.

Cunha-Machado acabou estudando o surubim com a geneticista de peixes Jacqueline da Silva Batista, outra coautora do artigo, mas não desistiu do mariri. Acabou por convencer a orientadora a aventurar-se na genética de plantas e conseguiu apoio para a pesquisa com a UDV, que entrou com parte do financiamento e 120 amostras de cipó nos estados Acre, Amazonas, Pará e Rondônia.

O capítulo que virou artigo se debruçou sobre 20 dessas amostras. A mestranda testou o poder discriminatório de vários tipos de sequência de DNA e concluiu que os melhores eram espaçadores internos transcritos (ITS, em inglês).

Os ITS compõem uma modalidade entre tantas de trechos de DNA sem muito sentido intercalados em meio a genes (sequências codificadoras de proteínas). Mal comparando, seriam como as palavras "né" ou "tipo" proferidas na fala, que podem ser eliminadas numa transcrição sem alterar a mensagem principal.

Longo cipó entrelaçado subindo em árvores
Cipó-mariri, usado para fazer ayahuasca, na variedade tucunacá - Arquivo pessoal/Antonio Saulo

As pequenas sequências dos ITS imersas no oceano de DNA que constitui o genoma de organismos se mostraram capazes de distinguir as etnovariedades tucunacá, caupuri e pajezinho, assim como um código de barras permite especificar cada produto na prateleira do supermercado. Mais que isso: outras análises com esses e outros marcadores genéticos do Inpa identificaram um total de 12 linhagens diferentes de mariri entre os três grandes grupos.

Para obter o importante ingrediente do chá, a UDV cultiva essas variedades principalmente por meio de propagação vegetativa. No caso do cipó, por estaquia (enraizamento de estacas). Podem-se germinar sementes, também, mas é difícil colhê-las numa planta que floresce nas alturas –quando floresce.

Flores brancas do cipó-mariri
Flores do cipó-mariri (Banisteriopsis caapi) usado na ayahuasca - Arquivo pessoal/Antonio Saulo

"A propagação vegetativa possibilita que medidas de conservação sejam realizadas mais facilmente, desde que as variantes genéticas sejam devidamente identificadas, para que as medidas de conservação sejam efetivas", esclarece Cunha-Machado.

"[Agora] é possível realizar análises genética, com base no método descrito no artigo, para identificar as diferentes linhagens e realizar ações de propagação vegetativa, contribuindo assim para a conservação."

Thalita Luz, que por conta da pesquisa acabou por se associar à UDV e frequentá-la durante um ano, vai além e vê possíveis implicações também no contexto clínico. Afinal, a ayahuasca e a DMT têm mostrado bons resultados preliminares como tratamento experimental para depressão, por exemplo.

Para ela, se as variedades produzem efeitos diversos em quem bebe o chá, torna-se interessante poder identificar os cipós para saber como variam seus componentes psicoativos. "Isso pode fazer diferença nos estudos clínicos."

Figura de artigo do Inpa mostra variedades do cipó-mariri
Figura de artigo do Inpa mostra variedades do cipó-mariri e parentesco entre elas - Reprodução do artigo Luz et al. 2022 https://doi.org/10.1007/s10722-022-01522-3

"Apenas começamos a desvendar [os mistérios do mariri]", diz Jacqueline Batista, a orientadora. "Foi um ponto de partida interessante confirmar o que fenotipicamente se conhecia. Precisamos de mais estudos e informações para definir, lá na frente, se são espécies diferentes ou não."

Cunha-Machado vai na mesma direção: "São fortes os indícios de que podem ser espécies distintas. Encontramos até 28% de distância genética".

Embora os membros de religiões ayahuasqueiras reconheçam efeitos psicoativos ligeiramente diferentes ao ingerirem o chá com diferentes etnovariedades do cipó-mariri, até hoje ninguém tinha estudado se haveria alguma diversidade genética entre essas linhagens, observa Francisco Prosdocimi, biólogo do Instituto de Bioquímica Médica Leopoldo de Meis, da UFRJ, comentando o trabalho no Inpa.

Tronco torcido de cipó com nódulo
Detalhe da variedade caupuri do cipó-mariri, usado para fazer ayahuasca - Reprodução do artigo Luz et al. 2022 https://doi.org/10.1007/s10722-022-01522-3

"As duas variedades do caupuri, com e sem nós, se mesclaram [na mesma categoria] e parecem sugerir que a presença de nós nessa etnovariedade está possivelmente relacionado com fatores ambientais, mais do que genéticos", ressalta Prosdocimi, que divide com Alessandro Varani, da Faculdade de Ciências Agrárias e Veterinárias da Unesp em Jaboticabal, um projeto para sequenciar todo o genoma (e não só marcadores) do cipó B. caapi (variedades caupuri e tucunacá) e do arbusto P. viridis.

"Espera-se que mais variedades do mariri sejam coletadas e analisadas para que se possam encontrar os locais de maior diversidade genética do cipó, entender suas rotas biogeográficas e quem sabe traçar o local de origem dessa planta professora", projeta Prosdocimi.

Ele e Varani já completaram metade da fase de sequenciamento da chacrona e um quarto do mariri, etapa que será seguida de anotação e análise. O projeto deslanchará agora que saíram recursos da Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo) para seguir com a pesquisa, que também tem por objetivo, entre outros, desvendar o mistério das etnovariedades do cipó.

Para Prosdocimi e Varani, a pesquisa tem por princípio respeitar, exaltar e compreender a cultura indígena tradicional amazônica e promover uma aliança entre a cultura tradicional ameríndia e a cultura científica.

"Esperamos gerar informações genômicas, evolutivas e funcionais inéditas para essas duas plantas, que, apesar de serem pertencentes a nossa biodiversidade, foram pouco exploradas sob o ponto vista molecular, genômico e taxonômico", afirma o resumo do projeto aprovado.

Cunha-Machado, o associado da UDV e inspirador do trabalho de Thalita Luz, vai na mesma direção: "O conhecimento tradicional precisa sim de mais respeito e atenção. Em nosso trabalho conseguimos documentar e demonstrar a importância desse conhecimento".

"O conhecimento tradicional e o conhecimento científico são independentes, são igualmente importantes, não acredito que precisem da chancela um do outro."

Cartaz de bate-papo com antropóloga Ligia Platero
Bate-papo com Lígia Platero, do Instituto Chacruna, no instagram da Beneva https://www.instagram.com/clinicabeneva - Reprodução

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AVISO AOS NAVEGANTES - Psicodélicos ainda são terapias experimentais e, certamente, não constituem panaceia para todos os transtornos psíquicos, nem devem ser objeto de automedicação. Fale com seu terapeuta ou médico antes de se aventurar na área.

Para saber mais sobre a história e novos desenvolvimentos da ciência nessa área, inclusive no Brasil, procure meu livro "Psiconautas - Viagens com a Ciência Psicodélica Brasileira".

Sobre a tendência de legalização do uso terapêutico e adulto de psicodélicos nos EUA, veja a reportagem "Cogumelos Livres" na edição de dezembro de 2022 na revista Piauí.

Não deixe de ver também na Folha as reportagens da série "A Ressurreição da Jurema":

https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2022/07/reporter-conta-experiencia-de-inalar-dmt-psicodelico-em-teste-contra-depressao.shtml

https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2022/07/da-caatinga-ao-laboratorio-cientistas-investigam-efeito-antidepressivo-de-psicodelico.shtml

https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2022/07/cultos-com-alucinogeno-da-jurema-florescem-no-nordeste.shtml

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