Virada Psicodélica

Novidades da fronteira da pesquisa em saúde mental

Virada Psicodélica - Marcelo Leite
Marcelo Leite
Descrição de chapéu Mente

Ratos ajudam a explicar viagem psicodélica de humanos

5-MeO-DMT lança roedores, mesmo acordados, em ondas de vigília e sono

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Gráficos em azul, verde e vermelho mostram mapas de diferentes fases do sono
Mapas de distribuição de diferentes fases do sono em roedores - Reprodução

Sob efeito de psicodélicos clássicos como o LSD, a psilocibina de cogumelos ou a dimetiltriptamina (DMT) da ayahuasca, a experiência assume aspectos paradoxais, como a sensação de sonhar acordado. Isso embora, na prática, psicodélicos costumem tirar o sono de psiconautas, sejam eles homens ou ratos.

Um estudo brasileiro com roedores submetidos a outra dessas substâncias alteradoras da consciência, a 5-MeO-DMT, sugere que eles parecem vivenciar algo parecido. Não é o caso de falar em sonhos murídeos, claro, pois não há como saber que conteúdos andam pela cabeça dos animais.

Contudo, é possível desvendar algo do que ali se passa monitorando as ondas cerebrais dos ratos viajandões. Assim procedeu uma equipe do Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (ICe-UFRN), um dos centros mais ativos em ciência psicodélica do Brasil.

Annie da Costa Souza e Bryan da Costa Souza conduziram boa parte do experimento idealizado e posto em prática por Sidarta Ribeiro e Vítor Lopes-dos-Santos. Eles injetaram a versão sintética da 5-MeO-DMT, um composto originalmente obtido do veneno do sapo-do-rio-colorado (Incilius alvarius), em ratos com sensores implantados no cérebro para amostrar atividade elétrica.

Os microeletrodos foram implantados no hipocampo e no córtex pré-frontal medial, estruturas importantes no gerenciamento de memórias. Em seres humanos, por exemplo, os sonhos (sono REM) promovem intensa troca de sinais entre hipocampo e córtex, um pouco como um computador transfere itens da memória RAM para o disco rígido.

Sem sonhos não há aprendizado perene. Esse é um tema caro ao neurocientista Sidarta Ribeiro, que sobre eles escreveu o best seller "Oráculo da Noite". O biólogo tem publicado vários artigos científicos sobre o papel do sono na fixação de memórias.

O estudo em questão foi publicado pelos autores no repositório bioRxiv, em inglês, e será apresentado por Ribeiro na conferência Psychedelic Science 2023, dentro de duas semanas, em Denver, Colorado (EUA). O título, traduzido, seria "5-MeO-DMT induz assinaturas espectrais LFP [potenciais de campo locais] similares ao sono no hipocampo e no córtex pré-frontal de ratos despertos".

Slide de PowerPoint com a frase "sonho, sonhos e psicodélicos" em inglês
Slide de apresentação de Sidarta Ribeiro na conferência Psychedelic Science 2023 - Reprodução

Um diferencial da pesquisa foi monitorar os bichos acordados, pois é mais comum estudá-los sob anestesia. Os experimentadores também controlaram o comportamento dos roedores medindo sua velocidade, pois a movimentação pode exibir frequências de ondas cerebrais confundíveis com as do sono REM.

Deixando os detalhes de lado (e são muitos), o grupo verificou que, embora os animais em estado psicodélico ficassem até mais ativos, suas ondas cerebrais naquelas duas áreas apresentavam, de tempos em tempos, semelhança com diferentes fases do sono.

Os padrões obtidos indicavam a alternância entre ondas características da vigília com o sono de ondas lentas (SWS) e de movimento rápido dos olhos (REM). O primeiro tipo caracteriza o sono profundo, reparador, enquanto o segundo corresponde aos sonhos em pessoas.

"É a primeira evidência empírica de que a experiência psicodélica funde comportamentos de vigília com ondas cerebrais cujas características espectrais são semelhantes às que ocorrem no sono de ondas lentas e no sono REM", explica Ribeiro. "Sugere um estado híbrido, com traços tanto da vigília quanto do sono de ondas lentas."

O animal, depois da 5-MeO-DMT, fica agitado, se movimenta bastante, ou seja, não dorme nada no nível comportamental. Mas, no plano cerebral, do ponto de vista das características das ondas cerebrais, continua alternando entre vigília, sono de ondas lentas e sono REM.

"Nossos resultados sugerem que o ciclo sono-vigília continua, o que talvez explique os efeitos ‘em onda’ dos psicodélicos."

De fato, não é incomum o psiconauta achar que está saindo da "força", como diria quem toma ayahuasca, e, sem mais nem quê, se ver lançado de novo no turbilhão. A reentrada no vórtex pode acompanhar música, alimentação, lembranças, algo visto na mente ou no meio circundante.

Ou então nada disso, como sugere o experimento do ICe-UFRN com roedores. Em outras palavras, as idas e vindas da experiência psicodélica seriam desencadeadas mais por fatores intrínsecos à dinâmica química e elétrica do cérebro do que ao estado mental do sujeito ou a fatores ambientais, a consagrada dupla de condicionantes que, no jargão da ciência psicodélica, se conhece como set e setting.

As ondas vivenciadas na viagem não seriam então mais que efeito das marés de neurotransmissores e substâncias psicodélicas, suas moléculas-irmãs, avançando e se afastando da orla neuronal, a arrastar o psiconauta para lá e para cá da rebentação que separa a praia da consciência do oceano profundo da psique.

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AVISO AOS NAVEGANTES - Psicodélicos ainda são terapias experimentais e, certamente, não constituem panaceia para todos os transtornos psíquicos, nem devem ser objeto de automedicação. Fale com seu terapeuta ou médico antes de se aventurar na área.

Sobre a tendência de legalização do uso terapêutico e adulto de psicodélicos nos EUA, veja a reportagem "Cogumelos Livres" na edição de dezembro de 2022 na revista Piauí.

Para saber mais sobre a história e novos desenvolvimentos da ciência nessa área, inclusive no Brasil, procure meu livro "Psiconautas - Viagens com a Ciência Psicodélica Brasileira".

Capa do livro Psiconautas - Viagens com a Ciência Psicodélica Brasileira (Fósforo Editora)
Capa do livro Psiconautas - Viagens com a Ciência Psicodélica Brasileira (Fósforo Editora) - Arquivo Pessoal

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