Voltaire de Souza

Crônicas da vida louca

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Voltaire de Souza
Descrição de chapéu forças armadas

Lembranças de um general

Dentro de uma farda, emoções fundamentais não se aquietam facilmente

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Conversas. Depoimentos. Gravações.

A notícia chega dos tempos da ditadura.

No Supremo Tribunal Militar, ninguém ignorava.

A tortura era rotina nas prisões do regime.

Em seu gabinete em Brasília, o general Perácio tomava um cafezinho.

–Vou repetir o que diz o nosso presidente.

O assessor Guarany ficou curioso.

–O que é que ele diz, general?

– "E daí?". "E daí?". E daí, caceta?

Ele se levantou da poltrona de couro.

–-Nunca neguei. A gente torturava sim.

–Mas, general…

–E temos muito orgulho disso. Ora essa.

–Verdade, general?

–Fizemos o sacrifício de torturar. Para salvar a democracia.

–Mas, general… o senhor… torturou pessoalmente alguém?

A mão de granito fez estrondo sobre a mesa de jacarandá.

–A modéstia, Guarany. A modéstia me impede de dizer.

–Puxa, general… mas nas gravações…

–O que é que tem?

–Parece que alguns ministros não estavam de acordo com esses métodos.

–Prova de que somos democráticos.

–Como assim?

–Tínhamos até comunistas lá dentro do tribunal.

–Mas, general…

–Carinha a favor de direitos humanos… querendo atrapalhar nossa obra de construção.

–Ainda bem que eles ficaram quietos, né general.

A raiva de Perácio não se continha.

–Nem sempre. Ficavam fofocando nessas gravaçõezinhas.

–E agora isso vem a público.

–Pois é.

–Bom, general, felizmente essa época já passou, não é mesmo?

–Mas que dá saudades dá, Guarany.

Uma suave brisa acariciava o espelho d’água do palácio.

–Só me resta a recordação.

–Precisa de mais alguma coisa, general?

–Está dispensado, Guarany.

O momento era de recolhimento. Intimidade. Relaxamento.

Perácio tirou do bolso da farda alguns de seus livros preferidos.

"Greta. A Tirana de Berlim".

"As Possuídas do Convento".

"Brigitte. A Prisioneira do Castelo".

Do banheiro, ouviu-se a ordem de comando.

Ríspida. Impositiva. Cortante.

–Guarany. Traz mais papel higiênico.

–É pra já, general.

A Lei da Anistia, como todos sabem, limpou para sempre as nódoas do regime militar.

Mas a verdade é a seiva da democracia.

Você espreme, espreme, até que sai.

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