Conversas. Depoimentos. Gravações.
A notícia chega dos tempos da ditadura.
No Supremo Tribunal Militar, ninguém ignorava.
A tortura era rotina nas prisões do regime.
Em seu gabinete em Brasília, o general Perácio tomava um cafezinho.
–Vou repetir o que diz o nosso presidente.
O assessor Guarany ficou curioso.
–O que é que ele diz, general?
– "E daí?". "E daí?". E daí, caceta?
Ele se levantou da poltrona de couro.
–-Nunca neguei. A gente torturava sim.
–Mas, general…
–E temos muito orgulho disso. Ora essa.
–Verdade, general?
–Fizemos o sacrifício de torturar. Para salvar a democracia.
–Mas, general… o senhor… torturou pessoalmente alguém?
A mão de granito fez estrondo sobre a mesa de jacarandá.
–A modéstia, Guarany. A modéstia me impede de dizer.
–Puxa, general… mas nas gravações…
–O que é que tem?
–Parece que alguns ministros não estavam de acordo com esses métodos.
–Prova de que somos democráticos.
–Como assim?
–Tínhamos até comunistas lá dentro do tribunal.
–Mas, general…
–Carinha a favor de direitos humanos… querendo atrapalhar nossa obra de construção.
–Ainda bem que eles ficaram quietos, né general.
A raiva de Perácio não se continha.
–Nem sempre. Ficavam fofocando nessas gravaçõezinhas.
–E agora isso vem a público.
–Pois é.
–Bom, general, felizmente essa época já passou, não é mesmo?
–Mas que dá saudades dá, Guarany.
Uma suave brisa acariciava o espelho d’água do palácio.
–Só me resta a recordação.
–Precisa de mais alguma coisa, general?
–Está dispensado, Guarany.
O momento era de recolhimento. Intimidade. Relaxamento.
Perácio tirou do bolso da farda alguns de seus livros preferidos.
"Greta. A Tirana de Berlim".
"As Possuídas do Convento".
"Brigitte. A Prisioneira do Castelo".
Do banheiro, ouviu-se a ordem de comando.
Ríspida. Impositiva. Cortante.
–Guarany. Traz mais papel higiênico.
–É pra já, general.
A Lei da Anistia, como todos sabem, limpou para sempre as nódoas do regime militar.
Mas a verdade é a seiva da democracia.
Você espreme, espreme, até que sai.
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