Fé. Dureza. Religião.
O direito ao aborto não é reconhecido no Brasil.
Mas há exceções.
Em caso de estupro, por exemplo, a gravidez pode ser interrompida.
O doutor Gineu estava em desacordo.
--Bebê é bebê. Vida é vida. E gravidez é gravidez.
Profundas convicções religiosas moviam as decisões do magistrado.
--Engravidou, tem de parir.
Um triste caso caiu em suas mãos.
--Olha aí. Mais uma menina. Dez anos. Estuprada.
Ele apertou o nó da gravata.
--Idade não importa. Se pode engravidar, vai ser mãe e pronto.
A decisão foi rápida e irrecorrível.
--Nada de aborto. Ora essa.
Os meses se passaram.
Despachos. Sentenças. Decisões.
--Haha. Acho que já pus umas oito crianças no mundo.
Gineu ficou pensando.
--Isto é... com a ajuda de Deus.
Algumas dúvidas surgiram em sua mente.
--Vai ver que fizeram aborto ilegal. Ou inventaram algum subterfúgio.
Ele fazia suas orações matinais quando ouviu uma voz.
--Gineeeu... Gineeeu... não basta julgar. Tem de garantir o processo.
A mensagem era clara.
--Isso aí. Quero ver o parto. Direitinho. E quem sabe até viro padrinho da criança.
Ele mesmo produziu o mandado judicial.
--Acesso à sala de parto. Sem ver o bebê, não considero minha decisão cumprida.
Era impressionante a diligência do magistrado no cumprimento de seu dever.
A touca azul e o avental foram providenciados para Gineu.
--Maravilha. Já começou?
--Olha, Excelência. Já está saindo a cabecinha.
Lágrimas turvaram os olhos do juiz.
--O Senhor seja louvado.
Foi quando ele notou coisas estranhas.
--Ali, na cabeça... o que é isso?
Duas nítidas protuberâncias apareciam na zona craniano-frontal.
Havia mais.
--Peludo pra caramba... e aí atrás? Que é isso?
As luzes da sala de parto começaram a piscar.
--É rabo? Esse bebê tem rabo? E os pezinhos?
Os olhos de Gineu viram o que parecia ser um par de cascos.
--É... é... será possível?
Em vez de choro, ele ouviu uma gargalhadinha rouca.
--Obrigado aí, seu juiz. Você mandou brasa nessa sentença, hehehe.
Gineu já estava gritando.
--É o Bebê-Diabo. Está de volta.
Orações e Bíblias não acalmaram a alma do magistrado.
Três enfermeiros retiraram Gineu da sala de parto.
A ala de saúde mental não ficava longe.
Mas ele continuava gritando do quarto.
--Tira o bebê-diabo. Tira ele. Expulsa o capetinha.
Da barriga de uma mãe, nascem bebês.
Mas a cabeça humana, por vezes, não se esvazia facilmente.
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