Voltaire de Souza

Crônicas da vida louca

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Descrição de chapéu aborto

Esse bebê ninguém tira

Para a mente fanática, argumentos a favor do aborto não tocam no principal

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Fé. Dureza. Religião.

O direito ao aborto não é reconhecido no Brasil.

Mas há exceções.

Em caso de estupro, por exemplo, a gravidez pode ser interrompida.

O doutor Gineu estava em desacordo.

--Bebê é bebê. Vida é vida. E gravidez é gravidez.

Profundas convicções religiosas moviam as decisões do magistrado.

--Engravidou, tem de parir.

Um triste caso caiu em suas mãos.

--Olha aí. Mais uma menina. Dez anos. Estuprada.

Ele apertou o nó da gravata.

--Idade não importa. Se pode engravidar, vai ser mãe e pronto.

A decisão foi rápida e irrecorrível.

--Nada de aborto. Ora essa.

Os meses se passaram.

Despachos. Sentenças. Decisões.

--Haha. Acho que já pus umas oito crianças no mundo.

Gineu ficou pensando.

--Isto é... com a ajuda de Deus.

Algumas dúvidas surgiram em sua mente.

--Vai ver que fizeram aborto ilegal. Ou inventaram algum subterfúgio.

Ele fazia suas orações matinais quando ouviu uma voz.

--Gineeeu... Gineeeu... não basta julgar. Tem de garantir o processo.

A mensagem era clara.

--Isso aí. Quero ver o parto. Direitinho. E quem sabe até viro padrinho da criança.

Ele mesmo produziu o mandado judicial.

--Acesso à sala de parto. Sem ver o bebê, não considero minha decisão cumprida.

Era impressionante a diligência do magistrado no cumprimento de seu dever.

A touca azul e o avental foram providenciados para Gineu.

--Maravilha. Já começou?

--Olha, Excelência. Já está saindo a cabecinha.

Lágrimas turvaram os olhos do juiz.

--O Senhor seja louvado.

Foi quando ele notou coisas estranhas.

--Ali, na cabeça... o que é isso?

Duas nítidas protuberâncias apareciam na zona craniano-frontal.

Havia mais.

--Peludo pra caramba... e aí atrás? Que é isso?

As luzes da sala de parto começaram a piscar.

--É rabo? Esse bebê tem rabo? E os pezinhos?

Os olhos de Gineu viram o que parecia ser um par de cascos.

--É... é... será possível?

Em vez de choro, ele ouviu uma gargalhadinha rouca.

--Obrigado aí, seu juiz. Você mandou brasa nessa sentença, hehehe.

Gineu já estava gritando.

--É o Bebê-Diabo. Está de volta.

Orações e Bíblias não acalmaram a alma do magistrado.

Três enfermeiros retiraram Gineu da sala de parto.

A ala de saúde mental não ficava longe.

Mas ele continuava gritando do quarto.

--Tira o bebê-diabo. Tira ele. Expulsa o capetinha.

Da barriga de uma mãe, nascem bebês.

Mas a cabeça humana, por vezes, não se esvazia facilmente.

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